quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Começar


“Todo começo esconde uma arte[1]”, todo começo esconde uma arte..., vê, Warat, hoje acordei com suas palavras em meus pensamentos. O motivo é óbvio: amanhã chega um novo ano. Mas hoje, 31 de dezembro de 2008, um dia com cara de final, de fechamento, de processo concluso, ainda pelejo, teimosa que sou, tentando embrenhar-me nos minutos decisivos da prorrogação do jogo. Faço isso porque quero vencer.
Vencer é começar. E podemos começar com poesia. Sem poesia não existem caminhos nem começos. É a poesia que deve impulsionar nossos movimentos. O olhar poético que se permite viver, enfrentar os riscos, afastar a rotina, banir o costume, expulsar os vícios que nos castram na ilusão de pertencimento a um território seguro. A poesia nos permite amar o outro e os dias. E o amor e os dias não podem se tornar hábitos cumprindo rotina, batendo cartão de ponto, previsíveis, previsíveis...
Todos os dias, começamos. Sempre quando chego em casa, abro o portão, avisto a garagem, o jardim, as flores, os cachorros, sempre vejo esse “mesmo” com a alegria dos eternos começos. O trabalho só tem sentido se compactua com o sentido dos começos, ver o brilho de novos sentidos de vida brotando no olhar de um aluno. Sim, o trabalho também precisa de poesia. Não dá para viver distante ou estagnada ou escravizada pelas percepções automatizadas dos outros. Isso não é começar, nem vencer, nem viver, nem amar.
Sei que nem sempre é fácil começar. Muitas vezes estamos cansados, a vida deu umas pancadas fortes, o corpo dói, a alma geme e um certo desânimo quer montar barraca em nosso quintal. Não permita. Caio Fernando Abreu diz que “quando tudo parece sem saída, sempre se pode cantar. Por essa razão escrevo”. Hilda Hilst instiga nossa vontade “Canta! Ainda que se desfaçam ilhargas, trilhas... canta o começo e o fim. Como se fosse verdade. A esperança”. Então amanheci cantando, cantando, escrevendo, renovando esperanças, mesmo que doa e você sabe que dói. A saudade dói. Cantando, lembro que Saramago diz que ninguém foge ao seu destino e cultivo um jardim de esperanças que esteja no nosso destino viver esse amor-poesia que sonhamos viver. Se não estiver, a vida continua, pois o ser de todas as coisas é o movimento, como já afirmou há séculos, o filósofo Heráclito de Éfeso e seguimos sempre, mesmo sem perceber, caminhamos rumo ao nosso destino.
Como ser em movimento que sou, sonho, caminho, planto, canto, pinto, começo re-começo. Voltei a pintar. Telas coloridas e enormes. Quem sabe me animo com o ritmo da pintura e volto para o piano? Também ando pintando novos sonhos. Doutorado em Lisboa, ou talvez Paris. Um novo livro. Um novo amor bem bom de viver. Quem sabe abrir um restaurante? É bom fazer as pessoas felizes. É bom viver momentos felizes. Hoje plantei novas flores em meu jardim. Girassóis. Florescerão? Não sei. O que importa é que floresçam em mim e nesse momento tenho um jardim repleto de girassóis tão alegres que dá gosto de ver. É, dia 31 de dezembro foi um bom começo. Desejo que todos os outros dias da sua vida sejam como esse está sendo pra mim, abertos para começar. Gol! E a partida recomeça.
Feliz ano novo!



[1] “Todo começo esconde uma arte” é o afirma meu querido amigo Luis Alberto Warat no início do texto que abre a coletânea “Territórios desconhecidos” que reúne boa parte de suas obras.

domingo, 28 de dezembro de 2008

Para que não seja apenas um sonho


Joana é uma mulher sem enfeites. Como se, ao usá-los, fosse encarquilhar e rachar. – Você vê como sempre te recebo de cara lavada? Pergunta com o olhar inquieto, quase suplicante, ao ser amado. Será que você realmente me vê, amor meu, e percebe a delicadeza do meu sentimento por você, que vem se erguendo de mansinho, segundo a segundo, centímetro a centímetro, cristal a cristal, pérola a pérola, povoando a minha vida com pequenas preciosidades? Continuando assim, em breve terei um tesouro. Lembra que te preparei um café? Desde ontem, quando tu partiste, que observo a xícara abandonada na mesinha de centro da sala. A xícara de ontem deixou memórias: um resto seco de café e açúcar no fundo. Os grãos de açúcar ficaram em uma metade e o café na outra. Observo com a atenção de uma cigana que quer adivinhar futuros. Sabe o que parecem? O açúcar assemelha-se a uma semente, portanto prevejo um futuro doce para nós. A imagem que o café deixou tingiu o fundo da xícara com um lindo céu estrelado. Preciso falar mais? Sorrio e as lembranças de nós dois chegam com a força do jorro de sentimento em estado puro. Tenho tantos sonhos para concretizar contigo! Sei, são sonhos um pouco machucados, mas querem muito viver! São sonhos ainda. Com todas as cores e a beleza dos sonhos. Querem ser viventes para além da minha imaginação. Será que você poderá amar uma mulher sem enfeites, mas que acredita em sonhos? Tenho tanta saudade de ti! Vem ficar comigo, eu te espero, mas não demora, que eu sofro com tuas ausências! Vem cuidar comigo das nossas construções, das preciosidades que plantamos, me abraça, acaricia meus cabelos, segura minha mão, olha pra mim: eu preciso muito de você. Quer um café? Vêm logo, para que não seja apenas um sonho, para que não seja apenas um sonho...
imagem: obra de Marc Chagall

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

essa coisa de pedaços ocultos

Joana-menina tinha uma coleção de pedras coloridas e uma caixinha de música minúscula que repetia a mesma melodia e falava e falava “é impossível ser feliz sozinho” e as tessituras da alma foram formadas com essa sina, crescendo assim dentro dela, como pequenos filamentos que ganhavam corpo rápido e formavam raízes grossas e trabalhosas com casca dura e miolo fibroso como se guardassem alojamentos micro esconderijos e todo dia Joana-criança montava seu ritual para sonhar e sonhava com brilhos flores escadas altares asas cores sorrisos e sonhava com a neve, principalmente casada com sol, quando as gotas caíam do gelo no transformar das estações e chegavam até a doer de tão belas e então doíam as gotas que desciam dos olhos e inundavam as bochechas e avermelhavam o nariz e os meninos cruéis riam do seu nariz de palhaça e Joana-bobona empurrava para dentro a estúpida vontade de chorar e olhavam pra ela e diziam que ela não era forte e sonhava com pedra lodo medo de escorregar e sonhava com corda bamba medo de cair e sonhava em não ver mais por dentro de tudo esse olhar é um dom e um fardo que eu não sei se agüento e vivia sonhando estetizando a vida com o que pinçava de precioso do íntimo dos seres e sonhava com começos sementes e acreditava que eram possíveis e eles aconteciam brotavam mas também acordava porque eles terminavam morriam e às vezes ela se perdia nesse fim, Joana-mulher buscava na pele as linhas que a fizessem encontrar o caminho e tinha medo de não saber mais começar e não encontrar mais as placas sinais de percurso as marcas no chão a orientação para os caminhos inesperados pois o tempo vai tributando uma tristeza no fundo dos olhos porque os amores não são círculos sem começo nem fim, na vida as linhas são retas ou curvas mas tem hiatos inevitáveis e sempre vão ficando pedaços de nós pelo meio do caminho e eu acho que foi essa coisa de pedaços ocultos que eu vi no fundo dos teus olhos, os hiatos, os hiatos e quem sabe a gente consegue pegar essas coisas tristes que ficaram espalhadas esfareladas pelos caminhos que percorremos e juntamos as dores sombras ausências vazios espinhos mágoas e reinventamos a vida recomeçamos tentamos mesmo com nossos olhos fundos encontrar as pedras coloridas e viver um amor poesia digno de ser vivido e habitado em todos os micro esconderijos dos nossos cantos mais ocultos.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Joana e a estrela


Sim, sempre serei verdadeira comigo mesma.

Todos os dias a menina corria para o quintal de casa e nele criava mundos. Conversava com as plantas, que floresciam mais belas quanto mais ela habitava aquele espaço de sonho real. Era um momento só dela que aprendeu a valorizar convivendo com a avó. Joana foi criada pela avó. A avó da menina tinha muitas histórias para contar. Era uma mulher muito simples, mas tinha muita sabedoria. A avó de Joana não era dessas senhoras católicas que estão todos os domingos na missa, nem costumava fazer discursos moralistas e religiosos. Mas gostava muito de contar histórias que a vida tinha ensinado. Contava histórias enquanto fazia crochê, contava histórias quando cozinhava, contava histórias penteando os cabelos da neta. Sua avó contava histórias o tempo todo. Nas noites estreladas as duas costumavam deitar e observar as estrelas. A avó de Joana dizia que toda estrela tem uma mensagem. – As estrelas sabem dos nossos segredos, filha. Ajudam a percorrer os caminhos da vida, nos dão a direção correta. O que aquela estrela te diz? Joana não sabia interpretar a linguagem das estrelas e pedia ajuda a sua maior intérprete das coisas do mundo. – Vovó, me diz, o que aquela estrela acolá fala pra mim? Qual, filha? Ah, aquela estrela é especial! Ela diz que, não importa o que acontecer, mesmo que todos digam o contrário do que você sente, você sempre deve ser verdadeira com você mesma. Entende, Joana? Escute a voz do seu coração, ele sempre saberá o caminho correto. Seu coração é a sua estrela e ele brilha, filha, ele brilha, e te indicará sempre o caminho correto. Joana, pequena ainda, repetia o que mais tarde faria um sentido imenso em sua vida: “sim, vovó, sempre ouvirei meu coração, sempre serei verdadeira comigo mesma”.

Uma lágrima percorreu sua face enquanto a saudade da avó pulsava no peito de Joana. Nessa época de natal ela costuma fugir das correrias e das compras. Esse ritmo frenético incomoda, pois parece o oposto do sentido do natal. É o que o coração de Joana diz. Para o coração de Joana, os shoppings afugentam o sentido, o brilho verdadeiro não está na iluminação de fora, mas na iluminação de dentro. Afinal, o natal simboliza o nascimento de Jesus e quem foi mais simples do que ele? Quem foi mais honesto em suas convicções? Nossa, não precisamos de tantas maquiagens, de tantas vaidades, de tanto poder, de tantas estéticas. Por que a verdade é simples, a linguagem da estrela é simples: nosso coração brilha quando tem amor. È o nosso maior presente de natal! O amor que damos ao mundo e o mundo precisa muito desse presente iluminado, quer seja na Guiné, na República Democrática do Congo, no Iraque, na França, nos EUA, no Brasil, aqui, agora, eu, você, precisamos de amor e também podemos dar muito amor ao mundo, ao outro e a nós mesmos. O amor é a nossa maior missão, nosso maior encontro, nosso coração, nossa estrela que agora brilha, imensa, imensa, dentro de mim.
Feliz natal!
Imagem: obra de Henri Matisse

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Um jardim todo para você


“A terra é um elemento muito apropriado para ocultar e manifestar as coisas que lhe são confiadas”.
Le cosmopolite.


A água começou a ferver. Tirei a chaleira do fogo. Dava pra ver a fumaça escapando da xícara de chá. Subiu o cheiro fresco das folhas de hortelã aquecidas. Huuum, a delícia dos pequenos prazeres da vida. Passeio em meu território e vejo como meu jardim está mais bonito nesse final de ano. Flores vibrantes, passarinhos chegando mais e mais. Todo final de tarde tem reunião de passarinho aqui em casa. É lindo de ouvir. Eles ficam escondidos nas árvores, conversando, conversando. Pego meu chá, e fico contemplando o presente que recebo.
Enquanto observo os movimentos dos pássaros, cada gole de chá parece lavar a alma. – Estamos num tempo de renovação, pensei. Domingo vi tanta beleza, participei de uma festa grande, para a comunidade da Jandaiguaba, em Caucaia. Amei ver as crianças brincando, pessoas celebrando, apesar das dores, apesar dos machucados da vida. Fiquei pensando nos meus machucados. 2008 foi inesquecível. Sorrio ao lembrar que foi o ano dos machucados. Sorrio porque 2008 passou. Apesar de tudo, o saldo foi bom. A gente se fortalece com o sofrimento e só entende o que é isso quando passa. Passou. Amadureci, aprendi a ter mais cuidado atravessando as estradas que me feriram, conhecendo vampiros que quiseram roubar minha essência, minha beleza, meu olhar de criança. Conheci um tipo de sofrimento que eu nem pensava possível. Eu caí. As paredes da casa acolheram meus gritos, tudo pareceu ficar deserto, vazio. Passou. Ficou vazio para que eu fizesse um novo jardim pra mim. (Ou para nós). Eu era inocente, ainda não tinha sentido o aço frio da crueldade humana. Agora eu sei. Enfrentei tudo com coragem. Não corri, não me abandonei, não deixei de acreditar. Percebi que é fácil ser amarga e pessimista. Muito fácil. Pessoas se acomodam nesse vício e começam a sugar os outros. Aprendi a fechar as portas para quem quer me roubar de mim.
O bom não é fácil. Tem que ser conquistado e mantido. Mas eu quero o que é bom. Quero a arte. A beleza. A amizade. O amor. Quero ver a beleza do mundo. E cuidar muito bem do que eu tenho, como um jardineiro cuida do jardim. Quero um jardim lindo pra mim. Quero um jardim lindo todo para você. Quero compartilhar jardins. Quero ver as pessoas felizes.
Não foi por coincidência que assisti há pouco o filme “Conversas com Meu Jardineiro” (Dialogue avec Mon Jardinier), com Daniel Auteuil e Jean-Pierre Darroussin, dois atores que amo. O filme traz a força da amizade, da beleza de dois mundos que se encontram. Um artista e um jardineiro. Os dois tinham arte e jardim na alma. Por isso se entenderam. É um bom filme para ver nessa época de natal.

“de vez em quando, eu me viro e olho para o céu. Não é para lá que eu vou. Não. Eu me perderia. Eu me vejo lá embaixo. No meio das raízes, onde tenho minhas marcas. Jardinar é minha vida”. (fala de Jean-Pierre Darroussin, o jardineiro no filme).
E fico curtindo esse finalzinho de ano, esperando os presentes que 2009 trará pra mim.
E enquanto espero, vou cuidando muito bem do meu jardim, para que você goste, meu amor, das flores que eu plantei pra ti e ache tudo bem bonito, quando enfim você chegar.
imagem: cena do filme "conversas com meu jardineiro".

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Intensas!


“Queria que lhe dessem atenção, ao mesmo tempo queria estar só, só consigo mesma”
Anne Delbée, sobre Camille Claudel.


Ontem tive duas mulheres intensas bem na minha frente: a atriz Ceronha Pontes e a escultora Camille Claudel (1864-1943), no “pausa dramática” no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura.
A primeira vez que vi Ceronha Pontes foi na montagem que ela fez de “Um comedor de ópio”, de Charles Baudelaire. Fiquei de queixo caído. A performance de Ceronha é sempre inesquecível. Têm muita força. Ela é uma mulher excepcional, magnífica, talentosíssima, intensa. É atriz, roteirista e diretora. Uma artista de verdade.
Falo “artista de verdade” porque quero ressaltar aquele ponto perigosíssimo que ilude alguns cooptados pelas seduções do mercado. Artista só é artista de verdade quando a arte é a razão do seu existir. Não dá para ser artista meio período. Você pode até ter afazeres, profissões, paixões, amores, filhos, mas tudo, tudo mesmo, o que o artista faz, tem que estar conectado, visceralmente amalgamado, com a arte que realiza, que transborda dele. O fazer artístico é tão fundamental quanto o ato de respirar. Sem a arte não há vida. O artista é um ser intenso que sentiu um chamado. É irrefreável.
Camille Claudel foi uma grande artista. Dona de uma personalidade indomável, possuía um comportamento atípico para a época em que viveu. Provavelmente hoje ainda causaria choque. Antes de conhecer Auguste Rodin (1840-1917) já fazia esculturas de homens nus. Após conhecer Rodin, teve um romance tempestuoso com ele, tornou-se sua amante e aprendiz. Com o tempo, cansada de ser a outra ou ainda, de ser explorada por Rodin, necessitou ter mais autonomia em seu estilo e rompeu com a dependência do mestre e amante. Para os homens, era aceitável e até natural possuírem amantes. Para uma mulher artista, no final do século XIX, uma vida autônoma era um caminho árduo para trilhar. A artista passou por várias crises psicológicas, foi acuada, incompreendida, amaldiçoada e tirada de circulação. Internada pela família em um hospício, nele permaneceu por trinta anos até morrer.
No século XIX, ainda vigorava o preconceito de que homens e mulheres eram seres intelectualmente diferentes. Os homens seriam capazes de feitos incríveis, próprios da criatividade do gênio. As mulheres, possuíam faculdades apenas imitativas. Além disso, a mulher artista ainda teria que enfrentar a questão da inacessibilidade à formação (o acesso às escolas profissionais era exclusivo para os homens) e a objeção radical da família. Estudo a partir de modelo vivo? Nem pensar na hipótese. Constituía algo indecente para as mulheres. O comportamento da mulher artista significava uma maneira desviante, quase marginal de existir.
O trabalho de Camille Claudel é dotado de uma expressividade única – “A pequena sereiazinha”, O Sankutala (1888), “A valsa”, (1892), Clotos (1893), “A idade madura” (1899); dentre tantas outras obras, demonstram o apuro técnico da artista, além da alma que ficou gravada, com a firmeza do mármore, em cada peça que produziu.
Ontem estive próxima de artistas de verdade. Isso me deu muito fôlego. Por ter ar para respirar, sigo intensamente e vivo.

domingo, 14 de dezembro de 2008

Olhos de mar revolto

Ele olhou-me olhos adentro. Como se tivesse o poder de colocar fogo dentro de mim. Olhou-me por alguns demorados segundos, suficientes para acelerar o coração, provocar tremores de pernas e frio na barriga. Em seguida, com um ar intrigado, disparou a pergunta:
- Qual a cor dos teus olhos?
- Castanhos eu acho, respondi insegura.
Procurei desconcertada pelo espelho perdido na bagunça da bolsa, num movimento bobo para verificar o que eu já sabia.
- São castanho-acinzentados, falei com voz firme, tentando disfarçar o nervosismo que se apossava de mim.
- Eu vi, têm uma cor estranha neles. Olhou-me agora com uma atenção maior ainda, como se fosse um médico procurando encontrar a causa da dor que o paciente sentia, como se quisesse desvendar o mistério do defeito da máquina, depois que vários especialistas falharam em suas tentativas.
Ele fala com a voz segura, típica de quem têm um diagnóstico preciso a oferecer:
- É difícil olhar para ti, Joana. O cinza do teu olhar assusta. É perturbador.
“E os seus olhos têm cor de mar revolto, assustam mais do que os meus”, ela pensou sem ter coragem de verbalizar os pensamentos. E quanto mais pensava nos olhos de mar, mais uma seqüência de pensamentos inconfessáveis ia tomando conta dela, querendo sair dela, para que ele soubesse, para que ele soubesse, que ele estava rompendo suas fronteiras e quanto mais ele olhava desavergonhadamente para ela mais ela se inflamava e tentava ocultar o fogo, mas fogo não é coisa fácil de se disfarçar e Joana começou a suar, o rosto vermelho, ai que calor está fazendo nesses dias, ai como eu tenho vontade de navegar nesse teu mar para encontrar tua calmaria escondida, mas antes quero toda a turbulência, quero a violência do desejo, quero conhecer o efeito dos teus poderes no meu corpo, que você me desorganize inteira, sim, eu sei, meus quereres são perigosos, podem trazer danos futuros, mas existe dano maior do que passar a vida navegando em águas calmas e seguras? tenho um amor passional pela vida, estou entregue às correntezas, de quando em vez vêm uma enchente , uma inundação inesperada que quase me mata, mas eu sobrevivo, eu sobrevivo, sou urgente como os melhores arrebatamentos, não se assuste comigo, não tenha medo de mim, me ame livre, livre, livre, que eu sei mergulhar no teu oceano, mas também vôo, vôo, que nem você, sou borboleta, sou pássaro e qualquer coisa a gente escapa daqui, vai para um lugar melhor, mas vamos, porque a vida é urgente e passa rápido, rápido, rápido demais.
Joana ainda não sabia, mas os olhares dos dois teciam caminhos recíprocos, ocultos apenas pela ausência da fala e dos gestos. Ele também incendiava por dentro e pensava:
“tudo o que eu quero na minha vida é amar intensamente essa mulher”.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Fonte de águas eternas


Lá, no território das fontes eternas, jorram águas cristalinas. Essas águas banham meu íntimo e transcendem todas as armadilhas que meu ego criou. Arranquei minhas vestes e me banhei nessas águas. Lavei cuidadosamente meus cabelos, toquei meu corpo com carinho e as marcas abertas, que ainda ardiam alguma dor, foram finalmente cicatrizadas. São agora apenas linhas gravadas na pele. Para que eu me lembre. Apenas isso. As linhas não são mais amarras e sinto-me completamente livre de seu peso. Prefiro transformar as linhas em um fio de Ariadne, que pode agora me conduzir pelo labirinto de mim mesma. O meu verdadeiro ser é a minha profundidade e nos meus subterrâneos encontrei fluidos mágicos que são as águas que brotam das fontes eternas. Eu precisei mergulhar intensamente, assumir o risco do mistério das profundezas para encontrar o melhor de mim. Entrar na concha, voltar ao ninho, banhar-me na fonte. Essa viagem causa medo, pois é uma viagem de retorno e para voltar, você terá que reviver tudo para se reconhecer sinceramente. É uma jornada de limpeza em que você abandona o que é desnecessário para sua evolução. O maior desafio colocado para o herói em sua jornada é o desafio do autoconhecimento. Somos todos heróis de nossas próprias vidas. Em algum momento sentiremos que apenas a nossa essência abriga a verdade. Não adianta ocultar essa busca com aparências, máscaras ou felicidades de superfície. Ainda somos mistério para nós mesmos, mas agora que as águas refrescaram minha memória, sei que o meu microcosmo traz a verdade universal e essa verdade jorra das fontes eternas. Essa verdade tem apenas um nome: amor. É o amor que vem lavar meus olhos que antes choviam e clarear minha consciência para sentir a imortalidade do meu ser que está sempre aprendendo caminhos e quanto mais o movimento do meu ser realizar avanços de percurso, quanto mais evoluir, mais estará próximo do retorno, pois passado e futuro acontecem ao mesmo tempo e evoluir pode significar retornar. Conectada com minha essência, aproveito para dizer o que talvez ainda não tenha te dito: eu amo você.
imagem: Antonio Canova, "Cupido e Psique"

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

No embalo de vozes e velas




Mas minha alma é um fogo que sofre se não arde.
Stendhal


Joana observa com a atenção de quem está diante de algo grandioso. - Ah, são lindas as chamas que brotam da boca do fogão! Seriam mesmo belas, as chamas em movimento, ou teriam seu esplendor guarnecido pela fortaleza de alguma memória? Joana sente uma fisgada de remorso, pois não consegue dar às chamas nenhum destino prático. Recorda que sempre apreciou as repetições. No banheiro não se irritava com a torneira pingando. As gotas que fluíam do cano metálico tinham um percurso tão sincronizado que a hipnotizavam e geravam um tipo de torpor. Caminhava um pouco e na sala perdia a ordem dos pensamentos ao emaranhar-se na sutileza de tons de amarelo e carmim do arranjo de flores. O movimento da água e as mesclas de cores da natureza tinham a simplicidade do chamado para a vida em suas constâncias, como se da exaustiva repetição sempre fosse brotar algo novo, quem sabe, algum segredo. Joana acreditava em milagres e por isso a tudo observava com atenção.
Apesar da fome, não tinha idéia do que comer, provavelmente por considerar jantar sozinha um fardo pesado demais para sustentar nesse momento de sua vida. A geladeira estava recheada com alimentos apetitosos, mas que demandariam um elevado tempo de cozimento. Na situação que estavam, crus, eram praticamente desprovidos de valor, assim como a pedra bruta necessita de lapidação para ter reconhecimento pelos critérios humanos. Joana salivou ao encontrar o depósito plástico com cogumelos secos chilenos, imaginou uma massa al dente com molho funghi, mas ao lembrar da dedicação exigida para o preparo, desistiu. Num impulso, apaga a luz da cozinha, como quem necessita recordar tempos imemoriais. Puxa uma cadeira, senta, e fica observando o movimento das chamas azuis. A dança do fogo azul no escuro, o lento ir e vir das pálpebras, o cansaço acumulado, propiciam o florescimento de um ambiente hipnótico. O cachorro do vizinho late e Joana é transportada para a infância, sente os pêlos do cãozinho pequinês que ficava embaixo da cadeira enquanto ela contemplava a chama solitária da vela. Delirava por dentro quando faltava luz. A família reunia-se ao redor da vela e sua avó contava histórias do passado, sempre temperadas com passagens de intensos amores. Seu imaginário amoroso foi construído no embalo de vozes e velas. Naqueles momentos de quase escuridão Joana sentia que nasciam nela forças infinitas, com um impacto tão grandioso em seu ser que pareciam esclarecer definitivamente os mistérios de sua alma. Então desesperava-se com medo de perder as forças nascentes e começava a rezar fervorosamente para que a luz não voltasse e acabasse com tudo. Mas a luz sempre voltava. Até que chegou o momento do império da tecnologia, a luz nunca mais foi generosa em suas ausências e a casa de Joana ficou cheia de sombras e sobras das escuridões compartilhadas. A família nunca mais se reuniu ao redor da vela. Ainda assim era uma coisa boa de lembrar. Apagou o fogo, acendeu a luz, abriu novamente a geladeira, encontrou uma maça e deu uma dentada com um ardor esfomeado de quem quer assumir o risco de perder a inocência.
imagem: obra de Pablo Picasso

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Ardor


Ardia para que ela não esquecesse. Raios vermelhos ramificavam-se a cada piscar, revelando o peso daquela noite inquieta, tingida por sonhos e sombras. Joana precisava criar compensações para o ardor que transbordava impunemente por seus olhos. O dia quente compactuava com o fogo, elemento indiscutivelmente predominante nesses tempos, sem terra, sem ar, sem água, sem frescor nem trégua. Por dentro e pelo entorno o clima ardia com profundidade de espírito. A alquimia das chamas poderia anular o ardor de dentro, procura acender o fogão, o botão automático quebra, cadê a caixa de fósforos, pronto, eis a chama acesa. As chamas do forno clamam pelo alimento, mas Joana não sabe o que comer. Uma lágrima escorre. Falta-lhe pão.
imagem: obra de Gustav Klimt

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Desejo


Assumo que sou irremediavelmente sentimental. Romântica mesmo. Vivo sonhando com o amor. Desde sempre. Esse sentimento (ou a busca dele) vai costurando minha vida, minhas relações, meus olhares. É irrefreável. Sentimental que sou, sofri muita pancada em 2008, por conta do amor (ou das distorções que os humanos fazem utilizando o nome amor) .
Como é final de ano, aproveito para ir me despedindo de você, 2008. Sem querer ser ingrata, pois o tempo trata de explicitar as lições que extraímos do que foi vivido, vou falando novamente, você doeu demais em mim!
Vou pedindo para ter sabedoria para lembrar, sem amargura, dos desejos não realizados, das frustrações, das traiçoes. Saber bem no fundo de mim que, mesmo os desejos não realizados, precisam de território e que talvez 2008 tenha sido um ano de semeadura e aprendizado.
Afinal, o que não foi também integra a vida, mas agora vá, 2008, com suas ausências e dores, cumprir seu ciclo, mas deixe a porta aberta para as esperanças nascerem em 2009.
Em 2009 desejo um nó(s) na minha vida. Não falo do nó que amarra, prende, imobiliza, impede um fluxo. Eu quero o nó poderoso, que protege, fortalece, que pode unir duas partes, dois corações, um laço de amor. Em 2009 eu quero um laço bem bonito e bem amarradinho com alguém especial.
Sim, eu sei ser feliz sozinha, aprendi a gostar de estar comigo, mas aprecio demais a felicidade compartilhada. Quero viver momentos simples com alguém. Quero levezas. Encontros sagrados. Sorrisos. Quero compartilhar mundos com pessoas que entendam a alma dos cronópios, que não tenham medo do amor, achando que amar com simplicidade é piegas, pois isso é muito ultrapassado.
Não esqueço quando meu amigo Warat explicou para mim os cronópios de Cortázar:
“Um cronópio é uma flor, dois são um jardim”:

Um cronópio, diz Cortazar, encontra uma flor solitária, no meio dos campos. Primeiro vai arrancá-la, mas pensa que é uma crueldade inútil, põe-se de joelhos a seu lado e joga alegremente com a flor, a saber: acaricia-lhe as pétalas, sopra-a para que baile, zumbe como uma abelha, cheira seu perfume, e finalmente deita-se debaixo da flor e dorme envolvido em uma grande paz. A flor pensa: “É como flor”.

Eu quero ter sempre em mim a alma dos cronópios.
Em 2009 quero ver florescer um jardim.
É possível, apesar de tudo, ver flores e amores em movimento.
Portanto, por tanto, eu desejo.


imagem: jardim da casa de Claude Monet

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Ricardo, por gentileza, outro café!

Adoro perambular pelas ruas aparentemente desinteressantes da cidade. Caminho como uma investigadora atenta a qualquer detalhe despercebido. As minúcias constroem mundos, às vezes. Entro num boteco, acomodo-me no banco em frente ao balcão e peço um café para o atendente do bar, dono de um bigode enorme e que usa um uniforme que num passado distante, já foi branco. Como é seu nome, amigo? Ricardo. Ele me diz o nome sem muita simpatia na voz ou no semblante. O café chega pra mim num copo americano. Que delícia tomar café num copo americano! Já estampo um sorriso escancarado da mais genuína felicidade. Uma vez uma amiga olhou espantada pra mim quando algo similar aconteceu e disse – você fica feliz com pouca coisa, né? - Fico. É fácil me fazer feliz. Enquanto sinto a cafeína acender meu corpo, vou viajando pelos meandros de uma citação do Clifford Geertz que nunca sai da minha cabeça: “O real é tão imaginado quanto o imaginário”. Desde então fico matutando que a vida pode ser, afinal, o que a gente quiser que ela seja, basta ter o olhar disposto a transformar a vida em uma sucessão de descobertas. Sei que o “basta” não é fácil, pois as criaturas humanas teimam em criar receitas e fórmulas gerais para a vida ideal. Como humana que sou, confesso que tenho meu ideal de vida, que consiste justamente em estar com a alma aberta para resignificar. Provavelmente por isso, pela alma aberta, é que seja tão difícil o encaixe na “realidade”. Cada grupo tem seu consenso, sua realidade comprometida, sempre é assim, do mais oficial dos grupos ao mais alternativo. Os grupos alternativos talvez sejam os mais contraditórios, justamente porque negam o que praticam. Criticam as pessoas que compram a felicidade em free shop, mas os alternativos também têm suas fórmulas, existem os que vivem com aquele ar intelectual de desinteresse, de tédio absoluto pelo mundo, sempre armados com respostas ácidas e normalmente nunca falam a partir de seus próprios sentidos de vida, sempre é o que aquele intelectual francês afirmou, então é muito estranho conviver com a pessoa e aquele mundaréu de intelectuais franceses mediando a conversa. Com os artistas contemporâneos é parecido, sempre vão buscar conceitos exteriores para fundamentar a arte que realizam e acaba sendo uma construção meio falseada, quase sempre sinto uma súplica na obra como se pedisse uma dose de sinceridade do dono para poder se manter em pé. Nessa hora minha consciência tributa uma dose, - de autocrítica-, pois eu estava pensando agora a partir da tal citação do Geertz, então não sou muito diferente de quem eu critico! Sei não, o ser humano é mesmo meio caótico e contraditório. Vejo um movimento no boteco que me arranca de meus pensamentos, um cara alto entra com um jornal nas mãos, coloca fita crepe no dito cujo e prega uma página de classificados na parede encardida do lugar. Então outros caras se aproximam e ficam fuçando a página, anotando detalhes nos guardanapos ásperos e eu pergunto para o Ricardo o que é aquilo e ele me diz, agora simpático, que tem uns três anos que o cara alto faz isso, coloca as ofertas de emprego para quem não tem acesso ao jornal e que um amigo dele conseguiu emprego assim e eu fico com os olhos marejados de novo da mais autêntica felicidade. Ricardo, por gentileza, outro café! Meu coração explode em sorrisos com esse dia lindo e humano demais.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

passagens irrefreáveis: as princesas


Não sei como são criadas as meninas atualmente, se as mamães e os papais são mais conscientes, mas eu ainda fui uma das vítimas da criação baseada no modelo da princesa. Sabemos que a imagem da mulher foi alvo de várias construções sociais e em suas linhas e entrelinhas, em seus mitos e arquétipos, foi sendo forjada o que seria uma “natureza feminina”. Impossível não lembrar da infância e da face cruel das estórias de princesas, tão impecavelmente belas e passivas. Muitas perguntam até hoje, quer seja da geração da vovó, da mamãe ou da minha: Cadê o príncipe dos contos de fada? Não tem jeito: a espera romântica vive nos envolvendo, crescemos aguardando os finais felizes cinderelescos. Mas é duro, minha amiga! A vida de princesa é completamente diferente da vida real! A princesa vive esperando um salvador para a amargura de sua vida. Um príncipe que a acorde com um beijo e transforme a vida em um paraíso de amor. O bom mesmo é acordar para o fato que o formato dos happy ends não cabe mais. Os príncipes de carne e osso são repletos de limitações, andam bem perdidos por aí, então, nossa salvação cabe, antes de tudo, a nós mesmas.

Desafio: transformar a felicidade em uma realidade possível.

Para poder viver um amor humanamente possível.
imagem: "Branca de Neve desfalecida após comer a maçã", pintura da artista Paula Rego, que representa as princesas sem idealizações.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

passagens irrefreáveis

O encontro de si é a mais forte transformação que pode existir no universo.

Sonhei que você me amava


Acordei com o coração aos papoucos: sonhei que você me amava! Nem precisei de tempo para organizar as lembranças do que foi sonhado, foi tudo passando por mim como se eu estivesse no cinema, confortavelmente desfrutando de uma linha narrativa da minha própria vida com imagem e som de alta definição. Você, com cara de bobo, me olhando enquanto eu dormia, vigiando cada respiração, cada movimento, fazendo cócegas na ponta do nariz para que eu acorde e ouça o teu sonoro e alegre bom dia! E eu me derramando toda que nem manteiga aquecida ao ver a bandeja de café da manhã, as frutas delicadamente cortadas, manga, abacate, banana, goiaba, uva, o pão de cereais quentinho, queijo de minas, café preto, bem forte. - Coma minha princesa que você está muito magrinha, minha flor, quer geléia no pão? - Eu quero é beijo e abraço - Só depois que comer! - Tá bom, eu como! Viu? Comi tudo, agora vem cá! E a gente se agarra, fica grudadinho trocando pele, olhos nos olhos, que criaturas bobas somos nós dois juntos, que nem sentimos o tempo passar, rindo de besteiras, contando coisas do passando, de vez em quando eu choro com as minhas tristes recordações e você acha lindo meu jeito melodramático de ver a vida, - tão sensível, a minha mulher! A criatura mais linda do mundo! Eu te amo. E eu penso que bom que você está aqui agora e as tristezas são apenas memórias. E eu quase fui feliz esquecendo que foi sonho o que eu vivi, quem sabe um dia eu viva com você o sonho real. Quem sabe...
imagem: "O beijo", de Gustav Klimt

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

O amálgama da vida

As asas continuam por aqui. O movimento é encantador, tão perfeito, cintilando, cintilando, colorindo o quarto com luzes azuis de várias tonalidades que mais parece ser a execução de uma coreografia ensaiada por toda uma vida. Uma brisa fresca e perfumada invade o quarto pela fresta da janela. Joana surpreende-se com o som que envolve tudo, com nuances suaves que anunciam a criação do clima adequado para o show da borboleta. Um grande espetáculo apresentado só para ela. Joana tem o merecimento do que agora presencia porque ainda anda por aí catando sonhos. Precisa de algo maior do que a realidade para caminhar, para sustentar seus passos, para ter fôlego e continuar a jornada. Afinal, o sonho é completo e a realidade será sempre mutilada. O sonho é o amálgama da vida e por isso Joana ganhou um par de asas azuis para que ela não desistisse deles, dos sonhos. Joana precisa tecer caminhos novos, com olhares mais altos, com visões de sobrevôo. O caos, as inundações, o mergulho, a queda, as provações, todas as mutilações vividas foram processos necessários. As asas precisam ter encaixe. As provações são as escultoras dos encaixes das asas. Para receber asas Joana foi uma criatura aquática, disposta a correr o risco da asfixia em um líquido amniótico que não era mais o da mãe. Respirar pelo líquido da mãe significa permanecer criança e Joana quer crescer. Quer o encontro com seu fluido essencial, quer o amálgama, quer aprender a respirar por dentro, a viver sem medo de si. Joana quer a escuta autêntica do coração, sem a qual é impossível a liberdade. O amálgama é a liga que junta os pedaços para construir um novo ser. “Agora novamente a estrela brilha dentro de mim”, diz Joana. Voa, voa, Joana, pois não há começo nem fim, viva os momentos, os fluxos, as passagens, os processos, os recomeços e veja que o dia de hoje é uma oportunidade luminosa para recomeçar tua busca, minha estrela!

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Joana explode e define limites

Ainda não é o momento. Não dá para seguir o movimento das asas azuis. Sei que a criatura alada saiu de dentro de mim, então a borboleta azul sou eu, mas não dá. Não com essa sensação amalgamada na alma de uma profunda, gigantesca, avassaladora pena de mim mesma. Não com essa penúria, com esse espírito pedinte, que perambula deplorável, miserável demais, não com essa tristeza que esmaga, que eu tento extirpar de mim, e vou fundo, no escaninho da alma, no baú guardado no porão mais longínquo mas a danada foge, inventa artimanhas, ardis e escapa, fazendo novos estragos, tecendo caminhos, e daí não param de aparecer portas, enquanto eu inocentemente acreditava que a busca tinha acabado em um dos rápidos momentos de alívio para meu sofrido coração.

Estou cansada. Machucada demais. Sem fôlego para o combate. E sem paciência para os rótulos. Nem para o céu que me prometem. O céu dos outros não me interessa. Nem o seu. Saiba que nenhuma máscara encontra encaixe na minha face. Assumi minha humanidade despedaçada, revelo meus frangalhos, minha vida minada por dentro, tenho nojo de representar, não tenho vocação para atriz nem para o ofício de poeta, que é o mais cruel e nefasto de todos, o poeta segue manipulando as palavras, falando o que não sente, assim como você, que é um grande fingidor de dores e amores. Por isso, você, em sua vida tranqüila e feliz, faça a gentileza de não me oferecer conselhos. Eu não quero saber de suas receitas. O pior é que você parece acreditar na comédia que representa. Nem sabe que é ator. Exibe um sorriso largo, tanto imagina que é feliz, repete tanto para si que é feliz, mente, mente, mente que acredita na veracidade da felicidade que sente. Pois eu te digo, meu amigo: teu jogo é uma prisão.

Quanto a mim, não sei jogar (nem quero) esses patéticos jogos de adultos. Não aceito ser cooptada. Sigo, enquanto preciso for, aos frangalhos, catando os pedaços por aí. Pelo menos pedaços eu tenho, posso ser uma colcha de retalhos e você? Tem pedaços? Consegue se ver? Então, respeite a dignidade da minha tristeza estampada e não olhe mais para mim e pergunte um ridículo tudo bem? Você não tem condições de saber de mim, pois não sabe nada de você mesmo. Portanto, deixe-me em paz e siga o ideal de seu mundo burguês, de plástico, falso, falso e siga feliz. Nunca mais, portanto, venha oferecer conselhos para quem assume a alma despedaçada. Se quiser falar comigo, venha sem máscaras, entendeu?