Parecia um dia comum, embalado pelas dinâmicas da rotina
contemporânea. Sol a pino e horário controlado para não perder o ponto.
Passos apressados, pois já avistava o ônibus chegando. E, então,
aconteceu a mudança de rota. O transporte passou e eu fiquei. Algo
quebrou o padrão.
“Eu vivo, você sobrevive”. Escutei,
encantada, a taxativa resposta. O laço com a resposta teve início com a
curiosidade de um transeunte que cutucou a onça com vara curta ao
perguntar: “Como você consegue sobreviver vendendo apenas poesia?” Para o
insistente questionador, trabalhar com arte era absurdo. Afinal,
existem tantos afazeres sérios, práticos, importantes. Por que
desperdiçar tempo com devaneios poéticos?
O estranhamento do
transeunte diante do modo de existir do poeta ecoou durante o resto do
dia. Escutava Rainer Maria Rilke falando ao jovem poeta Kappus. “A boa
arte é a que nasce por necessidade”. Exigência da alma sem a qual é
impossível viver. Sem arte, resta sobreviver.
A arte faz o
mesmo caminho enigmático do sonho. O conteúdo manifesto esconde outras
possibilidades latentes. O que vemos não é exatamente o que vemos,
existe um além, um ir mais fundo. Procurar tirar a casca das coisas e
nelas encontrar mundos novos, estranhamentos, desconexões. Um trabalho
de desconstrução das padronizações.
Interpretar os sonhos para
“desfazer o que o trabalho do sonho teceu”, disse o pai da psicanálise.
Tarefa árdua em nossos dias, quando a tentação da segurança de “apenas
sobreviver” é muito forte.
Com ela, a imagem da felicidade pronta, do consumo fácil, das terapias medicamentosas, do esforço minimizado, do tempo sempre ocupado.
Com ela, a imagem da felicidade pronta, do consumo fácil, das terapias medicamentosas, do esforço minimizado, do tempo sempre ocupado.
Desconstruir para construir? “Eu vivo, você sobrevive”. Confesso
que invejei a coragem de viver do poeta. Em sala de aula, escuto de vez
em quando um desabafo dos estudantes, angustiados com perguntas como
essa: “Mas você quer ser só artista”?
Sim, eles querem viver. Porque a vida é breve.
Ana Valeska Maia Magalhães
(crônica publicada no jornal O Povo, edição de 10/05/2013)
2 comentários:
"A vida é breve". Não sei como mensurar a brevidade da vida. Breve para quem? O que seria o que não é breve? Não sei. Um momento pode durar uma eternidade. Um momento feliz pode re-acontecer e, imersos em sonhos, podemos deixar o corpo e re-sonhar, "re-viver" momentos que, para alguns, foram breves.
Um beijo, adoro você!
Os entorpecidos e fisgados pelo ciclo do capitalismo globalizante pensam que aqueles que escolheram um padrão de vida menos atrelado ao lugar comum, não vivem.
Enganam-se.
Viver de verdade significa romper com o "torvelinho produção-consumo", bate-ponto todo dia.
Apesar disso, acredito que, no mundo cão, com arte ou sem arte,
com poesia ou sem, cada trabalhador é um artista supérstite, pois viver, neste mundo, já é uma verdadeira arte!
Parabéns Rilke, pela coragem e iniciativa.
Parabéns Valeska, pela sensibilidade em seus escritos.
Abrçs,
PAZ, AMOR, BÊNÇÃO
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