segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Estive aqui

A ação costuma acontecer enquanto a cidade dorme. O desafio libera adrenalina, o coração bate forte. Por dentro a sedução do medo de ser flagrado, de cair das alturas, de se machucar. Medo que caminha junto com o desejo de ser, de falar altivo: estive aqui. Plantar a marca autoral em locais proibidos, alcançar espaços inimagináveis. Superar limites, vencer o outro no quesito ousadia, confrontar regras sociais excludentes.

Alguns chegam a escalar dez, vinte metros. Talvez até mais. Avançam pelos muros das residências, igrejas, comércios, prédios públicos, monumentos históricos. Do perigo dessas ações brota uma linguagem que não conheço, e que sei, fala muito. Está no muro de minha casa, está por toda a cidade. Assembleia Legislativa, Centro de Eventos, o espigão da João Cordeiro. Nada escapa.

Claro que pode cobrir, passar camadas de tinta, no desejo de querer apagar a invasão. No entanto, pelo que observo, é questão de horas ou de poucos dias para acontecer um novo preenchimento de espaço. Quem faz diz que é arte, quem vê diz que é sujeira, lixo, vandalismo, poluição visual, crime.

Li que existe um projeto de lei municipal com o propósito de restauração de monumentos, muros e fachadas de imóveis públicos, o que é ótimo, mas existe um caminho efetivamente direcionado para compreender a linguagem que habita nossa cidade? Pois não há como não reconhecer que o que vemos é mais profundo que a pele das coisas. É algo que vai da superfície às entranhas. Dos prédios tecnológicos às cavernas rupestres. Em todos os tempos existe o desejo de ser.

Olho novamente para o muro pichado de minha casa. Preferia que não fosse assim? Claro. Entretanto, ao mesmo tempo sei que não basta cobrir a pichação. Para além da imagem que não entendo existe uma voz que quer ser escutada. Nesse ano que se inicia e mesmo na instabilidade dos tempos movediços que vivemos, ainda cultivo esperanças de olhares mais profundos, de políticas públicas efetivas e gestores realmente sensíveis no trato dessa realidade social que grita e que não pode mais ser, para tantos, antecipada como epitáfio. 

(texto publicado no jornal O Povo, edição de 31/12/2012)

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