sexta-feira, 7 de maio de 2010

A mãe de Alice

Cresci longe de minha mãe, sem uma imagem dela que pudesse alimentar meu imaginário.

Dela só sei o nome, pois está no documento: Laura.

Como ela era?

Loira ou morena, cabelos curtos ou longos, gorda ou magra? Observava meu pai e catava em mim o que não era dele e assim tecia a imagem de minha mãe. Meu sorriso ganhei dela, só pode. Meu pai quase não sorri e quando esquece da armadura e mostra os dentes é tão diferente de mim. Eu sorrio sempre, vivo gargalhando da vida. E assim vou levando, rindo e carregando um buraco por dentro, que é a ausência de minha mãe. Tem dias que é apenas um buraquinho no asfalto, dá pra passar por cima, mas em outros é um abismo, você cai e inevitavelmente se arrebenta inteira. Sempre piora quando chega o mês de maio, afinal, todos falam nisso o tempo todo, parece que todo mundo tem mãe, menos eu. Pior quando eu era criança, pois as outras crianças são cruéis com relação aos buracos que carregamos. Nas festinhas do dia das mães ficava só na multidão, encontrava um cantinho e ficava ao lado de minha avó, que fazia o papel de mãe para os coleguinhas da escola.

- Tua mãe é velha né Alice?

Com o tempo pedi para não participar mais dessas festinhas. Com o tempo a gente não quer mais fingir e passa a encarar melhor os fatos. O fato é que estou com 32 anos e até hoje levei a vida sem mãe. Até hoje, pois pela manhã recebi um telefonema de uma pessoa que diz ser minha mãe. Ouvi a voz embargada, carregada de emoção e eu petrifiquei. “Será brincadeira?” Pensei. Depois senti que não, uma voz como aquela é mais real do que eu. Ela quer me ver. Hoje, imediatamente. E eu apenas respondi que sim, dei o endereço e ela disse estar vindo pra cá. E estou esperando. Olho para o relógio e cada passagem do ponteiro é uma eternidade. Enquanto o tempo caminha e ela não chega, fico revendo o filme e é como se todos os guardados pulassem das gavetas e baús e eu reencontrasse tudo o que vivi, as pessoas que se foram, minha avó que morreu de câncer, meu pai que morreu dois meses atrás de ataque cardíaco fulminante. Sinto sufocar e penso que vou morrer também e a campainha toca. Minha mãe chegou. Tremendo, abro a porta. Fico chocada com o que vejo, a imagem dela é completamente diferente do que eu havia pintado, uma mulher com uma tristeza que grita do fundo dos olhos castanhos claros arrodeados de rugas, muito magra, um tom de pele mais claro do que o meu, cabelos curtos e brancos, uma camisa estampada e gasta, calças de tecido que não conheço. Minha mãe sorri quase sem dentes e chora. Carrega uma mala. Peço que entre. Senta no sofá e conta sua história, a nossa história. Fala que quando eu era ainda bebê ela se apaixonou por outro homem, que meu pai expulsou-a de casa e disse que a mataria se voltasse, que ela nunca mais poderia me ver novamente, resolveu fugir com a pessoa que ela se apaixonou, pensando em conseguir dinheiro para lutar pela minha guarda, e que isso foi o maior erro de sua vida, pois o homem era um crápula, que sofreu demais, que apanhava dele, que passou anos internada em um hospital psiquiátrico, que lembrava de mim todos os dias, que tentou me ver mas meu pai não permitiu. Mostrou-me a mala, que eu pensava ser de roupas dela, mas a mala era toda de coisas minhas que ela juntou todo esse tempo, roupinhas bordadas e amareladas com meu nome, vestidos de casa de abelha, bonecas, bibelôs, brinquedos e muitas cartas que ela escreveu, mas que sempre eram devolvidas. Meu coração estava aos papoucos, era como se tudo aquilo fosse entrando no buraco vazio que mora em mim. Fiquei confusa e pedi que ela fosse embora. Ela caminhou para sair, cabisbaixa, mas antes de ir lançou um olhar tímido, de soslaio: “tem o número do meu telefone na mala”. Fiquei olhando a mala, abri o objeto com desespero, investiguei tudo e desabei a chorar. Tive raiva de meu pai, quebrei as coisas de casa, fui toda descontrole, mas depois perdoei. Quem pode julgar um coração? E o que eu faço agora, sigo meu coração? Liguei para ela e fiz o convite. “venha almoçar domingo comigo”.

Ela aceitou.

Será meu primeiro dia das mães com minha mãe.

5 comentários:

Florêncio E. disse...

O coração fica aos papoucos mesmo lendo um texto intenso desses. Fiquei emocionada com o sentimento do reencontro. Amei a narrativa :D

Andréa Beheregaray disse...

Que lindo Ana, que lindo...emocionante.

Obrigada.

Meu blog esté temporariamente fechado, preciso curar uma feridas...espero voltar logo. Vou te acompanhar, não vamos nos perder
nesse imenso mundo virtual.
Bjs.

Ana Valeska Maia disse...

Bj Dinha.
Bj Andrea.
Duas flores lindas!

B., Antonione disse...

Ana, lindo o texto... Não há o que dizer. Apenas que sempre é lindo um recomeço.

Steven Douglas disse...

Tem momentos que a gente quer dizer algo mas fica sem palavras..
eu estou num desses agora.. Vinicius falava da arte do encontro, lendo as suas palavras-historia senti intensamente a arte do reencontro.

Bjos.