quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

A vida acontece


O traço inicial do encontro aconteceu delicado, quase frágil. As linhas desenhavam os laços do afeto com suavidade, proporcionando formas e sonoridades inéditas, numa melodia única que, aos poucos, envolve, seduz e se quer eterna. Foi assim o começo. Não foi nem caos, nem impacto, foi poesia. Não foi como onda violenta e nem foi como barragem que se rompe e a tudo arrasta. Não foi avassalador nem arrebatador. Foi lento como deve ser. Calmo e sábio como o tempo. Como o desabrochar da flor que necessita de semeadura, de cuidado, de trato, para existir como flor. Joana zelou por seu sentimento, por seu laço, com a consciência de que não existia nada maior. Ela sabia, porque é investigadora de si. Ele não sabia. Ela sabia da autenticidade de suas verdades. Joana mergulhava em suas solidões, enfrentava caminhos e labirintos desconhecidos para poder se encontrar e ser-para-si e ser-para-o-outro. Ele estava preso. Envolvido pelas convenções de fora, comprometido com ideais que lá no fundo ele sabia: eram cegos como ele. Ele tinha medo dos sentimentos e preferia mentir a pior mentira de todas, mentir pra si mesmo e Joana não suportou mais. Despediu-se. Desfez o laço. Deu adeus ao sentimento que cultivara. Olhou para as flores murchas com aquele olhar antigo de tristeza lapidada e funda. Olhou para as flores desmaiadas, desbotadas em suas cores, amarelas, brancas, azuis, vermelhas, esperaram tanto, as coitadinhas, ainda queriam cheirar como flores mas o tempo delas acabou: flor, seu tempo acabou! Lá fora alguns pingos, ploc ploc ploc, chuva indecisa, ficou apenas na promessa... Serviu somente para invadir narinas adentro, com um cheiro arrogante de mormaço que arranha a garganta. Não houve chuva para fertilizar o solo do laço e as flores agora estão murchas. Mas, Joana, calma, tem coisa acontecendo por aí, tem coisa acontecendo por aí... Dentro de ti existe um lago com peixes novos e forças nascentes que nadam e nadam determinados a encontrar caminhos. Mesmo não sendo como a gente quer, a vida continua dando impulso nos movimentos nas estradas dessa-vida-de-meu-deus e a gente anda, voa, mergulha, em curvas, profundidades, rasgos na alma, escorrega-cai-se-arrebenta-toda-quase-se-afoga, levanta, dolorida e machucada e continua, continua... e ainda pega vez em quando um atalho, pensando que se perdeu e mais pra frente você se acha de novo porque pra quem não tem medo do sentimento, a vida acontece, Joana, a vida acontece.

imagem: foto de Paulo Amoreira

11 comentários:

Franzé Oliveira disse...

Bem que podia ser Franzé e não Joana (risos), parece com que aconteceu recentemente comigo. As vezes fico pensando se não vou me livrar desse sentimento. Mas não podemos ter medo de sentimento e a vida segue. Adorei seu texto. Bjos com carinho.

Ana Valeska Maia disse...

É meu amigo, a vida acontece pra quem não tem medo de sentir.
E os sentimentos, assim como a vida, são transformados.
Bj grande.

Eduardo Matzembacher Frizzo disse...

Mergulhar nas próprias solidões é encontrar o caminho para a solidão maior que está na pergunta que o Sartre reavivou: por quê tudo existe ao invés de nada? É o que sinto nas flores e cheiros do seu texto. É o que sinto na sua sinceridade que deflora lágrimas que meus olhos de homem do sul não deixam cair. E por conta disso que amanhã haverá uma referência do seu blog no meu blog. Mas gostaria muito que você desse uma olhada no meu texto de hoje, visto que desbravei uma prosa que até então me era desconhecida. Um beijo, querida moça com a qual ainda quero tomar um chopp.

Eduardo Matzembacher Frizzo disse...

Amanhã seu espaço daqui ganhará um espaço nos meus vidros enegrecidos. Espere e confira, poeta. Beijos.

genetticca disse...

La fora tudo é ruidoso
fez ruido de vidas malgastadas.
Eu procuro as cinzas
das verdades mortas.
O vento movimenta o moinho
a agua corre pra o mar
sem ter ouvido nunca
a voz nu interior do corpo
arranhando a alma.

Só um sabe onde
ten morrido as flores da vida.

Bejos Ana

gloria disse...

mulher, de longe, fico te acompanhando e percebo que somos feitas da mesma matéria. uma fibra que desliza suave e dedilha sentimentos. eu me permito e vou com todo corpo. tem uma expressào que é muita significativa para certas pessoas: fulano bota o corpo fora. gente como nós e outros que aqui visitam, botamos o corpo dentro porque sabemos que ele é vivo, tem pernas e pode migrar. mesmo que leve esse gosto do que sentimos e ainda permanece. sou tua leitora assídua. bjs e bom caranaval princesa.

AfonsoHRAlves disse...

Após o banho, interrompido pela memória da leitura, pareço sair da carne, a carne ficando
engenhosa e acrobática. ossos a mostra, ossos de intensidade, ossos que aparecem mais.

Anônimo disse...

Hoje compreendo que a vida não é o que me acontece, mas o modo como lido com aquilo que me acontece.
Independentemente das minhas experiências de vida passadas e presentes, a minha vontade de ser acima de viver faz com que a minha existência seja uma delícia saboreada como um romance gostoso de lêr.
Fácil? Não senhora. Mas digna de ser saboreada e vivida por quem a vive: eu próprio.
Que aventura, hein, esta coisa de existir e viver?

Eduardo Matzembacher Frizzo disse...

Ana. Com certeza minha linhas dizem muito mais do que aparentam. No fundo eu sou um cientista. Leciono História do Direito, Bioética, Direito de Empresa e Filosofia para o Ensino Médio de algumas escolas aqui da região. Com o tempo tenho tentado destilar essa coisa de ser tão racional e deixar que o racional se faça por si, assim como os passos de uma rua que desconhecemos. Mas podes ter certeza que cada linha do que falo é meticulosamente analisada, isto porque sou paranóico com perfeição. Se o texto não esiver bom, deleto tudo. Esses dias, mandei um pseudo-romance de 90 páginas para o lixo. Por quê? Percebi que ele era uma merda. O desapego com o que sai de nós até que é fácil. Difícil é o desapego daquilo que vem até nós, das bocas que beijamos enquanto a lua era amarela e um janeiro de cinco anos atrás de anunciava. Aí mora o perigo. Você é doce e deliciosa como sempre em seus escritos. Ainda quero tomar vários chopps contigo. Um grande beijo e até mais.

aluisio martinns disse...

Se uma coisa me deixa irritado e quando uma mulher escreve bem porque diz o que nós homens não sabemos porque não somos porque não sentimos sem o medo de suas coragens porque achamos bonito ser feio. Você escreve muito bem, Ana. Tô puto. Beijo

Tainá Facó disse...

Ana, Ana.. Cada vez que leio teus textos me sinto mais feliz por não está sozinha neste mundo. Como é bonito, como é bonito...