sexta-feira, 7 de novembro de 2008

O tamanho do meu coração


Acordei e o ar me faltava. Era meu coração. O tamanho dele. Anormal. Dilatado. Maior do que eu. Ele tinha transbordado e estava espalhado pela cama. Grudado nos lençóis feito chiclete. Nessa condição, como poderia meu coração caber em mim? Como eu poderia carregar um coração maior do que eu? Houve um tempo em que eu pedia a Deus para diminuir meu coração, por puro instinto de sobrevivência! - Ai meu Deus, traz meu coração de volta pra dentro de mim! Hoje sei que com paciência ele volta. São apenas os momentos de crescimento, talvez por algum sentimento excessivo, algum amor que extrapola fronteiras..., mas eu sei, para tudo na vida existe seu contrário, vai chegar o momento da expansão ceder seu lugar, de mansinho vai se retirando, aquietando suas angústias, serenando, serenando. – Viu? Já diminuiu, voltou para dentro do corpo.
Houve um tempo em que Joana ainda não sabia de si como hoje sabe e seu coração transbordou pela cama. Joana ficou muito assustada, procurou um médico cardiologista.
– Só pode ser doença, devo estar nas últimas!
O médico receitou exames cardiológicos mais simples, “se indicarem alguma gravidade investigaremos”. Ultrasom, eletrocardiograma, esteira. – Parabéns, Joana, seu coração é absolutamente normal! Joana saiu com aquelas imagens pesadas, as linhas do eletro, a imagem do coração que o ultrasom captou. Colocou tudo em uma colagem, e ficou dias olhando sua normalidade. Ali estava o coração de Joana para a ciência! Algo muito estranho para ela.
Novamente na cama, deitada, foi entrando em sintonia com seus elos invisíveis. E, como quem se desprega do corpo, conseguiu viajar pelas entranhas de si mesma e viu como seu coração realmente é por dentro: meu coração tem um núcleo escuro e quase uniforme, não fosse por uma leve ranhura, resquício de uma cicatriz profunda que faz parte do entorno. O que envolve o núcleo é bem diferente de seu centro. É composto por várias linhas que são mescladas em degradê. Meu coração de longe é bonito de se ver: um núcleo escuro que se dissolve em várias cores. De perto, tirando o núcleo, nada é uniforme, meu coração é uma grande colagem. Existem fendas profundas e ranhuras leves. Existe uma cicatriz que ocupa quase a metade da parte posterior (da cor escura do núcleo) e inúmeras, incontáveis, inesgotáveis costuras.
Caio Fernando, só você para entender essa viagem por esse coração, você que já passeou tanto por essas terras: meu coração busca em desespero as levezas que vão se esvaindo com o tempo. Meu coração sofre porque foca no essencial e o mundo abriu possibilidades demais, visões demais, e não consegue encontrar o que é invisível aos olhos. Meu coração é tecido por tantas invisibilidades e sinto-tudo-muito e vibro ao me encontrar, mas inevitavelmente dói se me aprofundo e mergulho, pois fico mais sábia de mim e menos sou vista e por isso sofro. Meu coração sabe que esse é um caminho sem volta. Meu coração se agarra a uma filigrana de esperança que existam mergulhadores como eu nos oceanos que percorro. Meu coração é uma pintura de Chagal. Meu coração fica chateado em receber crachá de visitante. Meu coração é alegre e tem uma caixinha de música com tapete de veludo onde mora uma bailarina que vive na ponta dos pés, mas tem vontade de aprender sapateado. Meu coração é como Camille Claudel, que não compartilha do consenso, que não aceita ser amada pela metade e que sai pela rua uivando, entupida de cores na face-tela branca, assumindo o risco de ser levada para onde não incomode mais ninguém, e lá seja sepultada em vida por trinta anos. Meu coração não tem maldade. Meu coração sofre com gramados artificiais e tartarugas de plástico. Meu coração é a coluna da Frida Kahlo. Meu coração ama os cachorrinhos sarnentos e os viciados em crack. Meu coração é como o de Carson Mccullers, um grande caçador solitário inconformado com sua condição. Meu coração tem um olhar aberto para as flores da casa, para as pombas no telhado, para as borboletas, para a visita do beija-flor. Meu coração é um filme do Almodóvar, o sonho de Kurosawa, o conjunto de todos os filmes românticos em preto e branco. Meu coração é a sonata ao luar de Beethoven. Meu coração é uma jangada que fica feliz em te receber para acenar para outro alguém. Meu coração tem arranhões, entalhes e esfoladoras e justamente por isso consegue se perceber coração. Meu coração quer tanto-tanto aprender a amar, um amor-humanamente-possível. Meu coração quer sempre ser coração.

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