domingo, 9 de novembro de 2014

Perdidos no espaço

Por um momento procure imaginar a seguinte situação: você está em seu local de trabalho, conversando com vários colegas durante um intervalo. A maioria das pessoas que participam desta conversa você conhece apenas superficialmente. Os assuntos são variados, desde o aniversário dos filhos até o desejo de viajar nas próximas férias. De repente, vocês mudam o assunto e o tema é o resultado das eleições. Então um de seus colegas começa a falar colericamente. Afirma que nordestino não é gente, que são seres estúpidos e responsáveis pelo atraso do país.  Para combater esse atraso deveriam ser adotados procedimentos de castrações químicas e, por fim, propõe que os médicos da região causem um holocausto nesses seres inferiores. 
Creio que a situação narrada no contexto acima, se tomada tal qual o ambiente descrito, dificilmente aconteceria. Nas relações de trabalho existe uma série de instâncias reguladoras, mecanismos de vigilância e controle de comportamentos. Mas se as pessoas procuram dominar o fluxo de palavras odiosas em outros ambientes sociais, o que explica o jorro de insultos despejado contra o outro nos espaços sociais virtuais?  O teor virulento e maniqueísta das palavras proferidas após a divulgação do resultado das eleições acirrou vozes que procuraram aguçar o confronto entre regiões, reconfigurando o país com neocolonialismos. No cerne do que foi dito, o que as palavras revelam? E, por outro lado, o que camuflam?
Na análise deste fenômeno existe um dado constituinte do ser humano que não pode ser desprezado: a agressividade. Para Sigmund Freud nascemos conduzidos pelo império de nossas pulsões, que estão constantemente em busca de satisfação e alívio das tensões. Essa vida instintiva é marcada por uma dualidade: Eros e Tanatos, respectivamente pulsão de vida e pulsão de morte. Com o processo civilizatório tivemos que renunciar a alguns desses caminhos de satisfação imediata instintual. Direcionamos a agressividade para outros caminhos e procuramos prazeres substitutivos. No entanto, o conflito implacável entre Eros e Tanatos está sempre presente e produzindo fissuras.
Em pessoas infantilizadas psiquicamente, quando existem grupos separados por uma diferença, como no caso da escolha do candidato à presidência da república, há um severo conflito narcísico. A questão narcísica foi factível nas redes sociais durante a campanha. Foi um período em que observei discussões que culminaram em exclusões da rede e términos de amizades. Houve uma cisão na identificação com o outro. Quando o resultado foi divulgado o acúmulo de tensão fez romper a barragem responsável por conter o fluxo da agressividade. O sentimento de pertença ao grupo, dependendo do grau dos mecanismos de identificação, pode ensejar uma dissolução de fronteira entre realidade e fantasia. A agressividade é direcionada ao diferente, desumanizando-o. Transformado em inimigo, resta combatê-lo e quem sabe, destruí-lo.    
Portanto, nas atuais manifestações de ódio contra os nordestinos nas redes sociais, existe um nítido comportamento narcísico de grupo, exacerbando uma cisão da realidade que é própria da psicose. Perdidas na amplitude do espaço virtual essas pessoas deixam de sentir o peso das instâncias reguladoras e vivem sua onipotência infantil projetando no outro a responsabilidade por suas próprias existências mal resolvidas.

 Ana Valeska Maia Magalhães
(artigo publicado no jornal O Povo edição de 08/11/2014)

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