segunda-feira, 31 de março de 2014

A arte e os sonhos

Imagem: “O sonho de Constantino” 329x190 cm (1452-1456),, de Piero Della Francesca. Afresco, Capela Magiore, Igreja de São Francisco, Arezzo, Itália.  

Jorge Luís Borges (2010) fala que não existe um único homem que não seja um descobridor. Começamos descobrindo o amargo, o salgado, o côncavo, o liso, o áspero, as sete cores do arco-íris e as vinte e tantas letras do alfabeto; passamos pelos rostos, mapas, animais e astros, para finalmente concluirmos pela dúvida ou pela fé, ou ainda,  pela certeza quase total da própria ignorância.
Creio que Sigmund Freud se deu conta de uma maneira muito peculiar sobre a vastidão dos territórios inexplorados do universo humano. Assim como Borges, Freud indagou-se sobre descobertas, contatos, afetos e quis descobrir os efeitos dessa miscelânea de possibilidades na floresta desconhecida do eu. Observou atentamente o que se revelava, em fala e sintoma, para encontrar camadas escondidas ou metamorfoseadas. Paulatinamente deu ênfase aos começos que nos acompanham por todo o existir, como a relação que estabelecemos com mãe e pai e os acontecimentos determinantes e esquecidos da primeira infância. Perscrutou também como tudo isso reverbera, mesclado ao conjunto de afetos do dia anterior, na trama de um sonho.
Freud não foi o primeiro desbravador do microcosmo humano, nem foi o primeiro a propor um conhecimento mais profundo de nós mesmos (a filosofia grega clássica já havia muitos séculos antes, lançado a proposta do “conhece-te a ti mesmo”). Freud, no entanto, inovou por ir além, de uma maneira tão profunda e rica ao ponto de criar um novo método de conhecimento do ser humano, a psicanálise.  
Desde a antiguidade, os sonhos intrigam os seres humanos. Muitos povos nativos acreditavam que quando dormiam suas almas saíam de seus corpos e temporariamente entravam em outro mundo. O sonho era a lembrança dessa estranha visita. Recordo de José do Egito, talentoso em decifrar enigmas oníricos, garantindo prosperidade para a corte do Faraó. No âmbito de minha família lembro que minha avó era afeiçoada à crença popular de que o sonho é aviso de acontecimento futuro. Meu tio, ao contrário, desacreditava dos poderes oníricos. Para ele um sonho “era apenas um sonho, nada mais”. 
Dizem que Constantino, o primeiro imperador cristão, recebeu a mensagem de sua conversão por intermédio de um sonho. Esse sonho foi transportado para o pictórico em um afresco de Piero Della Francesca, intitulado “O sonho de Constantino” (1452-1456), localizado na Capela Magiore da Igreja de São Francisco, em Arezzo. Na imagem, enquanto Constantino dorme, às vésperas de uma batalha crucial, dois guardas e um servo garantem a tranquilidade de seu sono. Acima, um anjo em forma de pássaro dá o direcionamento da mensagem divina. As escolhas cromáticas do mestre do “Quattrocento” (ou o Renascimento no século XV), permitem a criação de uma aura que transita entre o onírico e o real, dissolvendo as fronteiras de separação entre os dois mundos.
Apesar das controvérsias a respeito da veracidade do sonho do imperador, (já que colocam fatores políticos como os que realmente ensejaram a conversão de Constantino), podemos ver a força do sonho na criação de um imaginário cultural. Outros artistas exploraram a temática do sonho como um aviso divino, como Giotto (O sonho de Joaquim) e Rembrandt (O sonho de José), obras e artistas que tratarei em textos futuros. No entanto, em nosso próximo texto, o foco será direcionado a um movimento artístico do século XX, que elegeu a linguagem dos sonhos como um campo fértil de produção artística: o Surrealismo.

Referências bibliográficas

BORGES, Jorge Luís. Atlas: Jorge Luís Borges com Maria Kodama. São Paulo: Companhia das Letras: 2010. 

(texto originalmente publicado em http://segundaopiniao.jor.br/)

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