Opera! Uma quase ordem que ouvi várias vezes acerca de minha severa miopia. Nem sei dizer exatamente por que reluto com férrea força em me desfazer da possibilidade de ver o mundo embaçado. Qual o sentido de querer permanecer com algo que desestabiliza, dissolvendo constantemente a nitidez das coisas?
Era um pingo de gente quando
comecei a usar óculos. Uma professora percebeu meu olhar espremido
procurando mapear a nuvem no quadro de giz. A cada ano, as lentes
ficavam mais grossas e é estranho agora lembrar que as reminiscências
mais nítidas da infância são as dos dias fora de foco, quando os óculos
quebravam. Sem ver o mundo de fora, tecia um mundo por dentro.
Acho
que a gente se constrói no que os outros chamam de defeito. Um conto de
Clarice Lispector, Evolução de uma miopia, é muito precioso ao tratar
do menininho míope, constantemente preocupado em ser aprovado por suas
qualidades. A evolução da miopia desenha um caminho desestabilizado, que
o conduzirá a uma das raras formas de estabilidade: a do desejo
irrealizável, do ideal inatingível, do impossível, do imoderado, da
paixão.
Não é fácil ver fora de foco – falo mesmo no sentido
metafórico, já que descentrar o olhar implica um descascar de vestes
laboriosamente curtidas pelo enquadramento social. Uma aprendizagem de
desaprender, como disse Caeiro. Mas como desaprender nesse momento
histórico que compartilhamos? As fórmulas fáceis ecoam, a educação veste
as cores do mercado, as terapias instantâneas prometem a resolução das
angústias humanas e a vida cotidiana é problematizada em termos
psiquiátricos.
Na era da ideologia da competência o
reconhecimento da própria fragilidade pode, para muitos, vir a
representar sinônimo de ruína. No entanto, num tempo em que,
bombardeados pelas imagens imponentes de seres humanos de braços
cruzados, num tempo em que muitos almejam ser o simulacro da liderança, o
que nos desestabiliza também pode nos libertar.
Ana Valeska Maia Magalhães
(crônica publicada no jornal O Povo, edição de 15/11/2013)
Um comentário:
...uma matemática deu-me por imóvel; um fenômeno de alteridade diz-me inexato; uma pedagogia conclui-me inconcluso; uma economia assusta-me com a metonímia do desuso e uma química consagra-me por rato e jura-me infernos e paraísos. Os meios? Epicentros quixotescos de insondável fim. Saber-se perdido é o ofício da boa arte...
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