segunda-feira, 21 de outubro de 2013

O dom da palavra

Estive recentemente em Minas Gerais e enlacei ao roteiro de viagem uma visita ao Instituto Inhotim, situado no município de Brumadinho. A paisagem é fenomenal e convida o visitante a caminhar durante um dia inteiro por um imenso jardim botânico entremeado por vários pavilhões de exposição de arte contemporânea. Na aventura dos passos e descobertas fiz porto no pavilhão da artista Adriana Varejão.
Minha atenção foi fisgada pelas ruínas de uma parede de azulejos, expondo um farto recheio de vísceras. Essa azulejaria em carne viva fez-me lembrar da primeira imagem que vi de uma obra de Varejão. Tratava-se de uma cena colonial, uma pintura representando o estupro de uma escrava pelo branco colonizador e o suplício de uma índia por dois soldados. Uma incisão no meio da pintura revelava a ferida histórica, num reforço do contexto de violência que construiu a sociedade brasileira.
As lembranças das obras da artista Adriana Varejão emergiram por conta dos entrelaçamentos históricos presentes no discurso do escritor Luiz Ruffato, proferido na abertura da Feira do Livro de Frankfurt. Ruffato é exímio contador de histórias, invencioneiro de mão cheia. Escritor fértil no uso do dom da palavra fez uso deste dom para falar a verdade em território estrangeiro e descascou as tintas da invenção de um Brasil estereotipado pelo samba e futebol.
Sei que é difícil mexer em ferida, mas não andamos lidando com essa dor mexida e remexida todos os dias, enfrentando as consequências das heranças colonial, elitista, patriarcal, escravocrata, adultocêntrica, heterossexista e latifundiária denunciadas por Ruffato? Afinal, porque é tão polêmico afirmar o que já sabemos? Deve ser porque a gente criou costume de se contentar com pouco, de ver a vida pelos olhos do outro, de fazer vista grossa para a hipocrisia.
Outro ponto forte do discurso de Ruffato reside no fato de ser autobiográfico.  Narra a vida real de alguém que teve sua trajetória alterada pelo contato com os livros. O encontro com a arte cria mundos novos. Trabalha em nós o manejo do dom da palavra, de fazer falar sobre nossa condição de existir.

Ana Valeska Maia Magalhães. 
Crônica publicada no jornal O Povo, edição de 18/10/2013. 
Crédito da imagem: obra de Adriana Varejão "Filho bastardo I".   

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