sábado, 14 de setembro de 2013

As trocas epistolares

Estou mudando de casa. Para algumas pessoas a mudança de lar pode ser um processo corriqueiro, quase banal. Tenho uma amiga que já atravessou a maratona de mudança de residência mais de quinze vezes e considera a aventura de triagens, encaixotamentos e transportes super normal. Eu não. Estou há semanas organizando pertences, descartando objetos, mirando fotografias antigas, reencontrando cartas, bilhetes, postais, telegramas.
A descoberta das cartas há tanto tempo esquecidas aguçou minha curiosidade. Como não reler? Inevitável a nostalgia, os papéis amarelados, os envelopes com borda verde-amarela. As palavras escritas à caneta, a grafia do narrador traçando um estilo de ser, tratando de coisas que merecem ser contadas, um nascimento, um enamoramento, um sentir-se diferente, uma conclusão, muitos começos, saudades. Cada carta possui uma força única, próprio da fala afetiva de um alguém para outro alguém.  
Talvez esse traço íntimo, esse laço de cumplicidade, explique porque as trocas epistolares são tão fascinantes para muitos leitores. O texto das correspondências e diários, na origem, não foi elaborado para ganhar publicidade. Então, a leitura das missivas ganha uma vida diferente, pois o encontro acontece como uma pequena invasão, um desfrutar de algo que não foi concebido para ser seu.
Mas, como acompanhar as inquietações e expectativas de Freud na estruturação do edifício da psicanálise sem ler as cartas direcionadas a Fliess? Como sentir o que é ser um artista no âmago sem ler a correspondência de Rainer Maria Rilke ao jovem poeta Kappus?  Como saber das angústias do menino Franz sem a carta ao pai Hermann Kafka? Ou as tramas de um amor louco na fala de Camille Claudel a Rodin? Ou ainda a beleza da amizade florescida nas trocas entre Mário de Andrade e Portinari?
Volto às minhas cartas. Encontro uma especial, escrita em abril de 2000. Um amigo que mora no Rio de Janeiro pergunta, no corpo do texto, o seguinte: “você tem e-mail?” Sem que eu soubesse, aquela pergunta trouxe uma sentença oculta. Hoje constato que esta foi a última carta que recebi.

Ana Valeska Maia Magalhães
(crônica publicada no jornal O Povo, edição de 13 de setembro de 2013. Imagem: uma carta de Camille Claudel))

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