Estou
mudando de casa. Para algumas pessoas a mudança de lar pode ser um processo
corriqueiro, quase banal. Tenho uma amiga que já atravessou a maratona de
mudança de residência mais de quinze vezes e considera a aventura de triagens,
encaixotamentos e transportes super normal. Eu não. Estou há semanas organizando
pertences, descartando objetos, mirando fotografias antigas, reencontrando
cartas, bilhetes, postais, telegramas.
A descoberta
das cartas há tanto tempo esquecidas aguçou minha curiosidade. Como não reler? Inevitável
a nostalgia, os papéis amarelados, os envelopes com borda verde-amarela. As
palavras escritas à caneta, a grafia do narrador traçando um estilo de ser, tratando
de coisas que merecem ser contadas, um nascimento, um enamoramento, um sentir-se
diferente, uma conclusão, muitos começos, saudades. Cada carta possui uma força
única, próprio da fala afetiva de um alguém para outro alguém.
Talvez
esse traço íntimo, esse laço de cumplicidade, explique porque as trocas
epistolares são tão fascinantes para muitos leitores. O texto das
correspondências e diários, na origem, não foi elaborado para ganhar
publicidade. Então, a leitura das missivas ganha uma vida diferente, pois o
encontro acontece como uma pequena invasão, um desfrutar de algo que não foi
concebido para ser seu.
Mas,
como acompanhar as inquietações e expectativas de Freud na estruturação do
edifício da psicanálise sem ler as cartas direcionadas a Fliess? Como sentir o
que é ser um artista no âmago sem ler a correspondência de Rainer Maria Rilke
ao jovem poeta Kappus? Como saber das angústias
do menino Franz sem a carta ao pai Hermann Kafka? Ou as tramas de um amor louco
na fala de Camille Claudel a Rodin? Ou ainda a beleza da amizade florescida nas
trocas entre Mário de Andrade e Portinari?
Volto
às minhas cartas. Encontro uma especial, escrita em abril de 2000. Um amigo que
mora no Rio de Janeiro pergunta, no corpo do texto, o seguinte: “você tem
e-mail?” Sem que eu soubesse, aquela pergunta trouxe uma sentença oculta. Hoje
constato que esta foi a última carta que recebi.
Ana Valeska Maia Magalhães
Ana Valeska Maia Magalhães
(crônica publicada no jornal O Povo, edição de 13 de setembro de 2013. Imagem: uma carta de Camille Claudel))
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