segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

O sonho das palavras

O quarto estava uma bagunça. As bonecas espalhadas pelo chão eram o espelho do típico cenário pós-apocalíptico depois de uma tarde de brincadeiras. Enquanto arrumava o quarto das filhas, colocando os brinquedos em um baú, Gisele lembrou.

Episódios da infância saltitavam da memória. Conseguiu até ouvir as gargalhadas das crianças correndo na rua, a meninada subindo em árvores, tramando aventuras. Nesses tempos não era perigoso ser criança na cidade. Os muros eram baixos, as janelas desconheciam grades. No final da tarde as pessoas colocavam cadeiras na calçada por apreciarem a união. E tudo transcorria entre conversas e contemplações. 

Aos poucos as cadeiras deixaram de sair de casa.

E as pessoas acompanharam o movimento das cadeiras. A cidade de belas paisagens subiu como um forte, apagando histórias antigas, crescendo muros, impondo grades, cercada por todo tipo de repelente de gente.

Gisele fala que dia desses viu um outdoor com um anúncio de graduação em gestão de segurança privada, a imagem para atrair os clientes parecia uma chamada para um filme de ação hollywoodiano. Eu pergunto se ela leu as notícias sobre Fortaleza, se soube que nossa cidade é uma das mais desiguais do mundo. Disse que sim e que também leu que por aqui o hábito da leitura é o menor do Brasil.

Perguntou-me se eu lembrava o dia, o momento em que aprendi a ler. Puxei os fios das recordações e nada encontrei para trançar. Acho que já nasci lendo, disse, aos risos. Nela, ao contrário, o momento do início morava nítido.

Em um instante mágico, conseguiu unir as palavras, passou a ler frases, parágrafos, textos, livros. Achava que as palavras costumavam sonhar e que a função do leitor era dar vida ao sonho das palavras.

Mais tarde começo a ler O filho de Mil Homens, novo romance de Valter Hugo Mãe. Lá encontro o seguinte: “pensava que quando se sonha tão grande a realidade aprende”. Corri para abrir o baú das palavras que sonham. Lá estavam as crianças correndo, as cadeiras na calçada, os muros baixos e as janelas abertas para um mundo melhor.

(texto publicado no jornal O Povo, edição de 28/01/2013)

Um comentário:

Unknown disse...

Legal o texto, Ana Valeska,
Guardo boas lembranças das suas aulas de Ciências Humanas(2012.2).
Continue sempre assim, ampliando a visão dos ouvintes, de um mundo melhor.
Jessé Santos