segunda-feira, 9 de maio de 2011

A ousada travessia

Íntimo no manejo da palavra, intenso no desvelar do sentir, Carlos Ayres Britto, poeta e ministro do Supremo Tribunal Federal, relator da ADI 4277 e da ADPF 132, finalizou sua decisão dando interpretação conforme a Constituição ao art. 1.723 do Código Civil. O voto do ministro é composto por 49 páginas que explicitam a percepção de mundo de um intérprete engajado no compromisso de promover o encontro entre normatividade e vida vivida, entre intelecto e coração.

Campo fertilizado impulsionando transformações de mundo, o século XXI engendra futuro novo. Nas palavras do ministro, no percorrer do século, preponderará a afetividade sobre a biologicidade. Se o afeto é o filtro primeiro, se configura o ponto de partida hermenêutico, quem pode causar embaraço ao sentimento de uma pessoa por outra? Nesse sentido, o voto do ministro exclui qualquer tipo de obstáculo ao reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar.

Acompanharam o voto do relator os outros ministros do Supremo. A decisão possui efeito vinculante: a união estável homoafetiva, assim como a heteroafetiva, constitui família. Destaco uma passagem da obra “Direito de/para todos”, de autoria da ministra Cármen Lúcia, que evidencia, num florir de palavras, como compreendo esse momento histórico: “Família é encontro, não é sujeição; é abrigo, não é cárcere. O único elo que garante a sua manutenção é o do afeto, que não se impõe, porque nasce da liberdade do bem querer”.

Quando existe amor, portanto, existe unidade. Amor soma, agrega, inclui, colore, promove um tempo do afeto, um tempo de união. Na longa travessia da jornada do viver coletivo, o passo dado no julgamento em questão foi valoroso e ousado - “mas a vida é uma ousadia, senão ela não é nada”, afirmou, visivelmente emocionado, o ministro Luiz Fux. Uma ousadia que fortalece a democracia fraternal, baseada no não-preconceito e na efetivação da percepção espiritual e humanista de que somos todos irmãos.

(artigo publicado no jornal O Povo, edição de 09.05.2011)

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