sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

A filha do açougueiro


Ontem fui aparar os cabelos e a cabeleireira contou-me rapidamente sua história. O pai dela era açougueiro e desce cedo foi inserida na brutalidade da vida e da morte. Viu darem paulada em cabeça de animal e deceparem galinhas mais do que via o colorido das asas das borboletas, que era o que ela mais gostava de ver quando era menina. O que ela menos gostava de ver eram as galinhas correndo sem cabeça de um lado para o outro e as bacias cheias de sangue de boi. Disse-me que sentia uma fisgada no pescoço e uma dose do próprio sangue integrando cada bacia. Foi interessante observar como seu olhar ficava triste e feliz a cada relato. Disse-me que lembrava sempre dos cabelos ao vento de sua mãe quando varria a calçada do açougue, mas que não foi por isso que seguiu a profissão. Foi coisa do destino o cotidiano de facas, tesouras, alicates, peles e carnes. Foi ajudante do pai, amolando faca no açougue, partindo bicho ao meio, depois aos pedaços e conheceu o marido assim, menina ainda, aos 15 anos. Nesse amolar arrancou um filete de sangue do dedo e ele, cliente de seu pai, tratou logo de socorrer a carne ferida da moça. Casou e nessa época o marido já era cabeleireiro. Trabalhou um tempão como manicure no salão de fundo de quintal, teve dois filhos, Davi e Sheila, e um terceiro, que “nasceu morto”. Hoje o casal tem um salão dos bons na área nobre da capital e ela segue exercendo seu ofício de cabeleireira e açougueira, levando o negócio pra frente enquanto o marido dá o nome para o salão que não cresceria sem ela. Então os filhos ligam, reclamam da fome, e ela corre pra casa. Precisa fritar fatias de bife de alcatra para os rebentos. Ela ainda não sabe que voará lonjuras com asas de borboleta e que terá mudanças de destino quando tentar partir a carne e perceber, num insight de libertação, que a lâmina, quando não é afiada, perde o corte.


Imagem: obra de Siron Franco.

19 comentários:

Mayara Ripardo disse...

E o ciclo de morte continua...
Quando isso irá cessar?

Ana Cristina Mendes disse...

Talvez precisasse ter uma lâmina afiada para resolver meu problema.

A dor nas costas acusa: tem um par de asas aqui dentro - você precisa retirá-las!

talvez precise de coragem extra para fazê-lo, uma cirurgia definitiva, uma vez que possa ter herdado alguma habilidade de meu pai, bom cirugião que era...

hoje pensei nesse espaço mínimo interno entre a pele e a carne, essas asas presas, essa dor aguda do atrito, da negação das escápulas defeituosas que nasceram com outra função.

Bom, amiga, o que fazer? o real e o simbólico unidos para sempre... que é verdade e o que náo é?

Nas asperezas da escolha, eis minha sina, essa dor que não cessa,
é como cantiga de grilo, não me dá nenhuma trégua...

Abraço da sua amiga-ana-irmã

Ana Valeska Maia disse...

Vai demorar ainda um bocado Mayara, infelizmente.

Aninha linda,
você é borboleta. sair da crisálida dói.
bjs, amo você.

Franzé Oliveira disse...

Menina sua sensibilidade para tratar as coisa do cotidiano me embreaga de sentimentos doces.
Imagino o cheiro da morte.
Uma vez fui com meus alunos para um abatedouro. Nunca mais quero voltar lá. A morte, sei que vamos encontrá-la mas é desolador a morte em massa. De qualquer animal.

Bjos com carinho (te adoro)
Sou um admirador seu e não sou secreto, viu? (rsrsrsrsr).

Ana Valeska Maia disse...

Franzé, grata pelo carinho!
De coração.

Daniel Simões disse...

Mesmo testemunha do crime e do sofrimento ainda consegue continuar a comer nossos irmãos... será que nunca colocou a hipótese de viver sem comê-los? Porque existem pessoas que - tal e qual como eu até aos 26 anos de idade - jamais lhes passou pela cabeça não comer animais.
E se lhe noutra oportunidade lhe perguntasse, Ana:
"- A senhora já pensou em viver sem comer animal?"
Mas com filhos, marido, hábitos familiares estabelecidos... muito difícil.

LPA

Ana Valeska Maia disse...

Daniel,
A vida tem me ensinado que cada pessoa está na sua compreensão e que essa compreensão está sempre em movimento.
Não sou eu quem vai julgá-las. Elas, no percorrer da vida vão aprendendo, segundo as consequências de seus praticados, a distinguir a verdade do erro.
O tempo mostra tudo e nós podemos demonstrar nossa própria compreensão com luz, paz e amor, que é o alicerce de nosso caminho.
bom fim de semana e grata pela visita.

Diego Akel disse...

Belo relato, Ana. E como sempre, tratado com enorme sensibilidade :)

Beijos e um grande 2010 para você.

Ed Rodrigues disse...

A vida ensina.
E nas maiorias das vezes, tem a dor como professora.
Não escolhemos a sala de aula, mas temos a opção de transmitir, nem que seja a preço de sangue, a fé que nos move e remove montanhas.

Um ano de mudanças para você, Ana!
Mudei de endereço e estou sem net em casa por uns tempos. Logo estarei conectado novamente. Abraço!

Ana Valeska Maia disse...

Ano bom pra gente,
especialmente pra vocês Ed e Diego.

Unknown disse...

o mais interessante é que do sangue que lhe trazia tanto sofrimento, a vida se encaminhou de apresentar-lhe o amor! encantador o seu olhar sobre a vida...consegue encontrar em cada cantinho escondido e aparentemente morto,a parte poética camuflada....parabens pela escrita e pela sensibilidade...

Daniel Simões disse...

É... às vezes precipito-me a julgar as pessoas... mas estou mudando, venho mudando... é um processo. Grato por falar.

lpa

Ana Valeska Maia disse...

Tayla, que bom receber sua visita por aqui!

Daniel, bjs no coração.

Eduardo Matzembacher Frizzo disse...

Já assistiu "Carne", "Sozinho contra todos" e "Irreversível" do Gaspar Noé? Ao ler esse texto seu maravilhosamente escrito, foram essas obras cinematográficas que me vieram à mente. De qualquer forma, a diferença entre carne e cabelos é exígua. Ambas, ao final, acabam sendo cortadas, seja para bifes, para perucas de dondocas carecas ou para que, nas asas de uma borboleta futura, alguma nesga de felicidade desfile carros de inesperado aos olhos dessa mulher e da sua família. Como sempre, ótima. Um beijo, Eduardo Matzembacher Frizzo (do blog http://insufilme.blogspot.com/).

Kiwi disse...

NOssa... é a primeira que faço por aki...
Linda... adorei...
Vida e Morte, ambos tem seu doce e amorgo...
Sempre que puder passarei por aki...
Espero um ter a honra de sua visita em meu humilde blog... gostaria de compartilhar pensamentos e conclusões...
Abç....

Kiwi

Ana Valeska Maia disse...

Eduardo, que bom ter você de volta por aqui!
Kiwi, sim, vou te visitar!

Andréia M. G. disse...

Maravilhoso texto. Acredito que todos teos esses momentos de insights de libertação que nos carregam para mudanças. A lagarta tem o insight dela quando sai do casulo e se vê borboleta. Vamos todos voar! :-)

Ana Valeska Maia disse...

É Andréia, culpamos os outros mas somos nós que nos prendemos.
Bjs.

Unknown disse...

estava já devendo esta visita, por mais que fosse somente virtual...rs...depois de eulandia e fabio me falarem tao bem e terem um apreço e carinho enorme por voce, ja era tempo....rs...prazer.