sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

As chaves de casa


Ouvia um barulhinho todas as vezes que pegava a bolsa. Quando fez-se silêncio na realização do movimento habitual um sinal de perigo provocou um geladinho no coração. Ela então se curvou para ver melhor, enfiou sem cerimônias a cara na intimidade da bolsa e não achou o que procurava. Sacudiu a dita cuja e não houve manifestação do som familiar que buscava. O geladinho virou palpitação com força de iceberg e Joana ficou agitada.
- Ah, não, perdi as chaves de casa!
- E agora, como você vai entrar? procura direitinho nessa bolsa, mulher!
Joana e Olívia marcaram um encontro em um café para conversarem sobre suas vidas. Para colocarem alguns assuntos em dia. O encontro deveria ser rápido, pois ambas estavam atarefadas, mas já havia se estendido por horas. Um assunto foi entrando no outro, como coisas que vão ficando embutidas, como aquelas bonecas russas que parecem ser uma coisa só, mas na realidade nunca são, sempre encontramos outras bonecas dentro. As duas amigas se perderam nas palavras, risos, choros, confissões e pedaços de bolo de chocolate. Quando Joana era adolescente assistiu a um desses filmes tipo sessão da tarde, chamado “Talvez algum dia”, em que a mocinha levava um fora do namorado e, aos prantos, com lápis de olho escorrendo e a sombra do fundo dos olhos junto com as lágrimas, comia um bolo de chocolate compulsivamente. Parece que o inconsciente de Joana apreciou muito essa cena. Olívia conhecia bem algumas reações da amiga. Sempre que Joana ficava triste com algum desafeto amoroso, empanturrava-se de bolo de chocolate, como se a fórmula do bolo tivesse o poder de assombrar fantasmas.
Joana acreditava nas alquimias.
Sem nenhuma elegância nos gestos, virou a bolsa pelo avesso e espalhou tudo pela mesa do café. Carteira, canetas de várias cores, escova, bolsinha de maquiagem, mas nada das chaves de casa. Ficou um tempo olhando desolada para a bolsa e, na seqüência, ficou angustiada, observando os objetos que dela saíram sem sombra alguma do que era seu real querer encontrar. Tentou abstrair das conversas que frutificavam das mesas no entorno, na esperança de conseguir penetrar em alguma brecha de memória, porém nenhum sinal em suas lembranças dos rastros que direcionassem ao percurso perdido de seu chaveiro sonoro. Irritou-se porque não conseguia lembrar de pistas para encontrar o que havia perdido, irritou-se porque aquele momento clamava objetividade de seu ser e Joana novamente achava-se imersa em seus devaneios, só conseguia lembrar da cena de um filme da Maya Deren em que a personagem tirava uma chave de dentro da boca. E então imaginou suas chaves caindo dos céus, a cântaros e lembrou de outro filme, “Magnólia” mas nele choviam sapos, e pensou que esse era um desejo idiota, que suas chaves caíssem multiplicadas chovendo do céu, pois muitas pessoas teriam suas chaves e assim ela estaria desprovida da segurança proporcionada pelas chaves únicas...
Olívia sacudiu o braço de Joana, arrancando-a de seus devaneios fílmicos, anunciando, com a firmeza de um juiz, a sentença peremptória:
- Precisamos encontrar um chaveiro que possa abrir suas portas trancadas, Joana.


Obs: essa história continua...

imagem: trecho do filme de Maya Deren

7 comentários:

gloria disse...

Linda Ana. o mais grave é que em certas circunntâncias nem o chaveiro resolve. precisa-se é de novas portas, de formas diversas de acesso ao que vedamos, sem querer, sem poder. temos que as vezes perder as chaves, revirar a bolsa e experimentar a sensação estranha de estarmos trancadas do lado de fora de nós mesmas. Sei lá, teus escrito ressoam, me provocam uma súbita sensação de dueto. Eu sou fascinada pelo que leio....bjs

genetticca disse...

Eu vo esperar que você terminar a sua historia pra te contestar,ainda naô vejo como vae abrir esa porta,sim chaves tambem se pode atravessar cuaquier obstaculo,so precisa ter vontade.Bejos

Anderson disse...

Chaves perdidas, portas trancadas...humm...texto interessante!! ;)

joão disse...

Haverão mais chaves que portas Joana?

Lembro dessa cena da Maya Deren. Lembro de ter sido completamente envolvido pela absurda sensação de volúpia que esse momento me provocou. Porque será que senti isso? O que haverá de tão sedutor (pra mim?) numa mulher que pode fazer nascer chaves na boca? Será que um beijo pode destrancar a si e o outro? Quem nasceu primeiro: a fechadura ou a chave?

Li o teu texto mergulhando em todas as imagens surrealistas que ele me provocou. Libido e transcedência se moveram juntas dentro de mim no grande caleidoscópio das sensações misteriosas.

Tenho medo de achar todas as chaves. De alguma forma difícil de explicar a existência de portas para mim fechadas é um tipo de alívio.

Anônimo disse...

Estou doido para ver a continuação, pq estou doido para ver a Joana de posse (novamente) de duas chaves. E sei que isso, de uma maneira ou de outra, vai acontecer. Bom... espero, pelo menos. (rsrsrs)
E vou tentar ler novamente aquele seu texto sobre o qual conversamos.
Depois te digo o "resultado".

Beijo grande.

eDu Almeida disse...

Olá Ana. Estou aqui me alimentando das histórias de Joana e pensando. Pq tanto desespero em achar as chaves? Claro que estou sendo um tanto subjetivo, pois se pensasse objetivamente pensaria: Cama um chaveiro. Pronto, resolvido. Mas penso também que algumas portas devem permanecer trancadas um pouco e lá descansarem lembranças, desejos. Aí quando menos esperamos, vamos dar uma revirada em um baú aqui, uma caixinha ali e lá estão as chaves dessas portas propositalmente (ou não) trancadas. Mas vou esperar pra ver como Joana vai se sair dessa.
Mas sempre sou envolvido por uma sençasão de nem sei do que qnd leio sobre Joana. Só sei que é bom rs!
Xêro.
Ps: Já postei a segunda parte do texto. Passa lá.

Anônimo disse...

Joana, o vento, a chuva, e os raios solares são palavras da natureza. O vento pode se tornar brisa que acaricia ou pode vir em forma de furacão. A chuva pode cair mansamente, molhar a terra, para produzir a fartura ou vir em forma de tempestade. Os raios solares se incidirem em demasia podem te matar. Não fiques à mercê da natureza, procura tua luz própria que é imensa.

Vera.