segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

As chaves de casa (parte 2)


Joana desceu as escadas com a indignação estampada na face, criando uma marca funda entre as sobrancelhas. Teria que ir sozinha resolver o problema, a mãe de Olívia começou a passar mal e a filha recebeu o telefonema com a notícia e saiu correndo para acudir, lógico que ela correu para acudir, afinal, mãe é mãe, pensava Joana numa espécie de auto-conformação. Enquanto descia as escadas pensava em como seria chegar no chaveiro sozinha àquelas horas, já era quase meia-noite. Tinha medo desses enfrentamentos, mas não queria importunar ninguém. Resolveu assumir a resolução do problema por sua conta e risco. Afinal, a cidade é grande, e no café existiam inúmeros cartões de serviço e dentre eles, o de um chaveiro 24h.
Enquanto caminhava a sensação de incômodo crescia junto com os passos. Perder as chaves significava sair de sua zona de conforto. Por que essa perda justo agora, que ela não estava forte? Desejou com férrea vontade encontrar as chaves pelo caminho. Nada. Nas calçadas, apenas garrafas de cerveja vazias, pontas de cigarro e pessoas caminhando, assim como ela caminhava agora. De onde estava já avistava o carro estacionado. Continuou a caminhar, mas seus passos estavam mais lentos, como acontece com quem reluta em cumprir seu destino porque sabe o que vai enfrentar.
Observou que o movimento dos bares findava e os garçons iniciavam o recolhimento das cadeiras e das mesas, tudo parecia cumprir sua fiel rotina. Menos ela. Menos a sua vida. Apenas Joana estava na contra mão. Sentiu-se tão deslocada que teve vontade de correr dali, correr das chaves e do chaveiro. Correr das responsabilidades. Correr de suas ausências. Correr das decepções. Correr como Lúcia, Lola ou Forrest Gump[1]. Correr com o desespero de quem constata a perda de algo precioso, de algo que não se quer perder. Começou a chorar lágrimas pretas, tinha passado lápis nos olhos, como na música da Pitty, e foi cantarolando ...Você já viu uma mulher derramando lágrimas pretas na face? Lágrimas pretas, Lágrimas pretas, Não fique assustado ao ver a mulher pintada chorando lágrimas pretas, Eu amo tanto, Você já viu uma mulher derramando lágrimas pretas na face? Lágrimas pretas, Lágrimas pretas, Não fique assustado, chorava muito porque pensava nas chaves e lembrava somente de gaiolas, celas, prisões e agora do poema da Mulher vestida de gaiola do João Cabral de Melo Neto.

Mulher vestida de gaiola

Parece que vive sempre
De uma gaiola envolvida,
isenta, numa gaiola,
de uma gaiola vestida,

Será que ela estava engaiolada? Vestida de gaiola como no poema? Voltou a caminhar mais rápido recitando mentalmente a continuação do poema e envolvida na poética dos versos, com as lágrimas pretas caindo ainda, sentiu que algo morria dentro dela para que outra coisa pudesse nascer.


de uma gaiola cortada
em tua exata medida
numa matéria isolante:
gaiola-blusa ou camisa.

E, assim como tu resides
Nessa gaiola, cingida,
O vasto espaço que sobra
de tua gaiola-ilha


é como outra gaiola
igual que o mar: sem medida
e aberto de todos os lados
(menos no que te limita).


Chegou. Abriu a bolsa e a chave do carro ainda estava lá, bem no fundo.


Obs: continua...
[1] Referência aos filmes “Lúcia e o sexo”, “Corra Lola Corra” e “Forrest Gump”.

imagem: filme "Corra Lola Corra"

21 comentários:

eDu Almeida disse...

Aninha, estou me tornando um viciado em blogs isso é normal? Sim, vamos ao texto. Pode parecer coincidencia ou não, mas eu estava assistindo o "altas Horas" sábado qnd a Pitty cantou e em quem pensei? imagina. E agora vem vc falando sobre Joana e essa mesma música sei não heim. Mas vou esperar um pouco mais pra falar sobre Joana.

Ana Valeska Maia disse...

Sei lá Edu, ultimamente não acho nada normal...,
Bem, a Joana sempre te espera.
Bjão.

Tainá Facó disse...

Ana Valeska linda, que saudade de te ler. Ando tão sem tempo. Passei por aqui correndo. So pra te dar um ''oi'' e deixar-lhe claro que continua linda. Como sempre. :D

Um beijo! ;*

Ana Valeska Maia disse...

Oi Tainá, saudade tb, vou já já te visitar. Olha quem fala, linda é tu!!!!
Tomara que você consiga garimpar mais um tempinho...
Bj, flor!

Anônimo disse...

Joana, achei interessante tua colocação.Eu nunca pensei em lágrimas pretas.Só pensei no óbvio,nas l´grimas salgadas,e que elas cumprem seu ciclo vital, nascem emorrem para aplacar nossa dor.

Vera.

Aline Lima disse...

Gostei da "lágrima preta", rss! =)

Anônimo disse...

Todo mundo chora
Todo mundo ri
Agente chega
Agente vai embora...

"Não podemos pedir que não haja mais lágrimas. Nem todas são de tristezas". (Franzé)


...
E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!
...

(Florbela Espanca)

Ana Valeska Maia disse...

Gosto de usar lápis nos olhos e sou chorona, então, as lagrimas...
Bjs mamãe, Aline e Franzé.

Anderson Cristiano da Costa disse...

Gostei muito! Existe algo de estranhamente familiar em Joana, parece com alguém que conheço e desconheço ao mesmo tempo.

Bj

joão disse...

Joana Kahlo. Assim, com mistura de Joana e Frida, a vejo nessa saga.

Entre chaves perdidas e lágrimas negras uma mulher que procura entender o que existe fora da gaiola violada. Que vida é possível fora? Existe fora?

Joana Kahlo começa a perceber que não existe nada que não seja dentro. Que pudor é possível para uma alma exposta ao exame público?

No rastro negro da lágrima escorre torrente de inocências.

A vida vocifera urgência.

O corpo deseja descanso.

A paz emudece.

Tudo quanto acontece em momentos assim é presságio ou revelação. Com alma exposta, tudo toca com veemência violenta. Então a mente sente mais do que pensa.

Aprenderá Joana a fazer as próprias chaves? Habitará as ruínas da gaiola destroçada ou construirá em outro lugar ninho, com algumas portas abertas, outras fechadas e outras semi-abertas - como convites à brincadeira de investigar?

A história de Joana é universal, mas invulgar.

Ana Valeska Maia disse...

Talvez você conheça mesmo a Joana, Anderson.

Ana Valeska Maia disse...

João, seu comentário é poesia pura. Muito lindo. E estou cá pensando, tuas linhas instigaram muito...

gloria disse...

a busca das chaves de Joana é tão recorrente em nossas vidas né? tem uma frase de uma música do Noel que diz "quem acha,vive se perdendo". eu perco tanto as chaves! e nào gosto de incomodar. será que essas poesias brotam do chào Ana? Dos nossos campos de coisas/pessoas, supostamente, perdidas? Em você, tudo permanece, como jóia trasmudada em palavras. Virei, sempre, te ver/ler. bjs

Anônimo disse...

O andar da Joana a procurar em lugares improváveis o que tanto quer é o retrato da não aceitação da situação dolorosa, da esperança desesperada de retorno à "zona de conforto".

Obs.: Este comentário continua... qdo "As chaves de casa" continuarem. rsrsrs

Beijo grande.

Ana Valeska Maia disse...

Creio que a busca é o que temos em nós de mais eterno, Glória. A chave tem esse simbolismo, né? de talvez desvender, abrir o segredo, revelar o mistério, dessa coisa ausente que instiga muitos movimentos nossos.
Adoro os comentários que você generosamente deixa por aqui. São como um presente.

Ana Valeska Maia disse...

Eh, né, Tio, o que procuramos nem sempre está na nossa zona de conforto. É preciso correr riscos de vez em quando.
Bj!

genetticca disse...

As chaves ,as portas,saô simbolismos.As gaiolas saô verdade,nois fazemos as gaiolas a medida do nosso intelecto,da nossa liberdade.Entaô e preciso inventar portas e chaves pra fechar os medos
bem fechados.
Procurar simbolismos e só un jeito de acreditar na gaiola.
As lágrimas saô pretas, salgadinhas,mesmo que a tinta da lula,e con esas lágrimas a Joana pode escrever a sua história dentro da gaiola. Um bejo

Franzé Oliveira disse...

Seu comentário em meu blog foi muito intrigante.

" Empurram tantas máscaras que as pessoas se acostumam a usá-las. Tanto, tanto, que não conseguem mais desnudar-se nem pra si, nem para o outro".

Quem somos nós nesse mundo?
Brigado pela visita, viu. Passei a seguir seu blog. Bjos com ternura.

Vanderhugo disse...

Olá!
Vim te avisar que vc foi um dos meus 15 escolhidos para o "selo dardos", por ser um blog que visito constantemente.
Confira lá no meu blog o que é quais os 15 blogs premiados.

Abraços!!!

Ana Cristina Mendes disse...

Essas gaiolas... entendo bem! Temos a chave, temos a imensidão que nos espera... Temos também o desejo que nos toma conta.

Penso agora nesse momento em uma frase que você me disse um dia desses e, nada mais oportuno do que compartilhar com você. " voa, voa Joana, voa alto!!!"

carinho grande,

ac

Mônica. disse...

Aninha, tô adorando essa saga de Joana.
Bjo em tu! ;)