quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

No embalo de vozes e velas




Mas minha alma é um fogo que sofre se não arde.
Stendhal


Joana observa com a atenção de quem está diante de algo grandioso. - Ah, são lindas as chamas que brotam da boca do fogão! Seriam mesmo belas, as chamas em movimento, ou teriam seu esplendor guarnecido pela fortaleza de alguma memória? Joana sente uma fisgada de remorso, pois não consegue dar às chamas nenhum destino prático. Recorda que sempre apreciou as repetições. No banheiro não se irritava com a torneira pingando. As gotas que fluíam do cano metálico tinham um percurso tão sincronizado que a hipnotizavam e geravam um tipo de torpor. Caminhava um pouco e na sala perdia a ordem dos pensamentos ao emaranhar-se na sutileza de tons de amarelo e carmim do arranjo de flores. O movimento da água e as mesclas de cores da natureza tinham a simplicidade do chamado para a vida em suas constâncias, como se da exaustiva repetição sempre fosse brotar algo novo, quem sabe, algum segredo. Joana acreditava em milagres e por isso a tudo observava com atenção.
Apesar da fome, não tinha idéia do que comer, provavelmente por considerar jantar sozinha um fardo pesado demais para sustentar nesse momento de sua vida. A geladeira estava recheada com alimentos apetitosos, mas que demandariam um elevado tempo de cozimento. Na situação que estavam, crus, eram praticamente desprovidos de valor, assim como a pedra bruta necessita de lapidação para ter reconhecimento pelos critérios humanos. Joana salivou ao encontrar o depósito plástico com cogumelos secos chilenos, imaginou uma massa al dente com molho funghi, mas ao lembrar da dedicação exigida para o preparo, desistiu. Num impulso, apaga a luz da cozinha, como quem necessita recordar tempos imemoriais. Puxa uma cadeira, senta, e fica observando o movimento das chamas azuis. A dança do fogo azul no escuro, o lento ir e vir das pálpebras, o cansaço acumulado, propiciam o florescimento de um ambiente hipnótico. O cachorro do vizinho late e Joana é transportada para a infância, sente os pêlos do cãozinho pequinês que ficava embaixo da cadeira enquanto ela contemplava a chama solitária da vela. Delirava por dentro quando faltava luz. A família reunia-se ao redor da vela e sua avó contava histórias do passado, sempre temperadas com passagens de intensos amores. Seu imaginário amoroso foi construído no embalo de vozes e velas. Naqueles momentos de quase escuridão Joana sentia que nasciam nela forças infinitas, com um impacto tão grandioso em seu ser que pareciam esclarecer definitivamente os mistérios de sua alma. Então desesperava-se com medo de perder as forças nascentes e começava a rezar fervorosamente para que a luz não voltasse e acabasse com tudo. Mas a luz sempre voltava. Até que chegou o momento do império da tecnologia, a luz nunca mais foi generosa em suas ausências e a casa de Joana ficou cheia de sombras e sobras das escuridões compartilhadas. A família nunca mais se reuniu ao redor da vela. Ainda assim era uma coisa boa de lembrar. Apagou o fogo, acendeu a luz, abriu novamente a geladeira, encontrou uma maça e deu uma dentada com um ardor esfomeado de quem quer assumir o risco de perder a inocência.
imagem: obra de Pablo Picasso

6 comentários:

Anônimo disse...

Nessa Manhã chuvosa, tão longe e tão perto, suas palavras me transplantam para outro tempo e outro lugar, onde o amor e o ancochego vencem a solidão e a tecnologia. Fechei os olhos e imaginei, naquela cena ancestral, voejando ao redor, pequenos e inquietos vaga-lumes, "bichinhos cuja alminha acende ou cuja luzinha tem alma" (nas palavras ao vento de Adriana Falcão).

Joice Nunes disse...

quanta delicadeza!
valeska,
queria poder ver vocês todas
um encontro
muitos abraços
o que você acha?
a glória tinha dado essa idéia

Wellington Pereira disse...

Fico sem palavras em ver Joana viva, com suas lembranças, em minha mente, em minha infância, no meu dia-a-dia. Coisas escritas que trazem em meu peito uma vontade de ser presente nas estórias de Joana. Sensível e unica é você Ana. Bom não está tão longe de você (você sabe o que eu quero dizer com isso...)
Bjs.

Anônimo disse...

"a luz nunca mais foi generosa em suas ausências e a casa de Joana ficou cheia de sombras e sobras das escuridões compartilhadas"

Nossa... meu cinema de sombras, quando faltava luz... que saudade... no alpendre, todos sentados no parapeito, vendo os desenhos que se formavam na parede amarela pela luz dos carros que passavam.

Beijo, beijo, beijo... e obrigado por essa lembrança.

Mônica. disse...

Que Joana possa contianuar acreditando em milagres.
Aninha, qualquer espelho de qualquer tamanho ou formato. Tô de saída agora a tarde recolhendo alguns. Se puder emprestar algum fico bem grata!
Bjo em tu! =)

Anônimo disse...

"Quem é Ana? Que pena se vocês não a conhecem pessoalmente. É uma fada disfarçada de gente, que se mistura em meio aos mortais e os encanta. Quando eles, esses mesmos mortais as aborrece, com sua medíocre e turva visão de mundo, Ana sorri. Aprendi com ela que o sorrido é um grande companheiro. Ele esconde os segredos e deixa você muito bonita. Mas somente os ascencionados conseguem sorrir assim, sem desdém ou mágoa, apenas com a gentileza de quem não quer interromper o fluxo de ninguém"

Trecho da obra ainda em gestação
"Segundo Olhar"
De Marcia para Ana e sua tão querida Joana.