sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Doce



Quando dei a partida ainda salivava goiaba, tangerina e abacaxi. O sabor das frutas estava vivo em mim, assim como a memória da agonia do feitio das primeiras petições. Bastou olhar para o prédio. A velha máquina de escrever, a tentativa de disfarçar o medo que o elevador emperrasse, a energia da construção com nome de santo. Lá eu sentia o peso das mil vidas e milhões de esperanças nele contidas. Caminhamos e outros olhares refrescaram o tamanho das lembranças, a arte da Sil, as missas de domingo no colégio Salesiano. O beijo de despedida mais doce do que a combinação de todas as frutas do mundo. O olhar mais doce do mundo... Fiquei feliz quando encontrei o vigia franciscano, e foi impossível resistir: baixei um pouco o foco do olhar para ver se o cachorro Bolinha tinha "o olhar de tristeza milenar" igual ao da cadela Diana, da música do Toninho Horta. Tinha.
Desmontei a exposição, coloquei tudo no carro. Não, não queria ir para casa. Caminhei, fui ao café, mas as pessoas que me cativaram não estavam mais por lá. Parece que o querer da permanência é algo meio egoísta. Da turma dos afetos apenas a Aparecida. Perguntou se eu estava triste porque estava só e calada. Eu? Que é isso... é apenas saudade.
Desci as escadas. Ainda não queria voltar para casa. Arrisquei o cinema. Um filme israelense. Uma crise entre nações simbolizada no conflito entre vizinhos por conta de um pomar com pés de limão. A questão do pomar foi parar na Suprema Corte. O vizinho da dona do pomar era ministro da defesa de Israel e as árvores eram uma ameaça à segurança da autoridade. Mas o pomar era a vida daquela mulher. Para ela, as árvores eram como pessoas.
Era hora de voltar. Com o carro cheio de arte vim ouvindo Saint-Preux. No meio do caminho algo insólito. Fumaça, pessoas correndo, desespero. Um incêndio. O motorista do ônibus buzinava apavorado. Quando percebi o incêndio estava vizinho a um posto de gasolina. Eu ao lado do fogo, na iminência da explosão. A música alta que ouvia anunciou que naquele momento eu poderia morrer de uma morte trágica. Foram três minutos. Pensei na minha avó, nos meus cachorros, em você. Fui feliz? Fiz as pessoas felizes? Lembrei do meu pai, médico dos queimados, trabalhou muito tempo com almas destroçadas pelo fogo de fora. Então ele ajudou muita gente, seja razoável, ele não é uma pessoa ruim, apenas não soube ser seu pai da maneira como você interpretou ser um pai. O sinal abriu e eu entendi porque algumas coisas na vida da gente são como são. Voltei a sentir o gosto do sorvete da tarde, a completude de ter você dentro de mim e o sabor de ver o teu olhar de sombra e sol.

2 comentários:

Anônimo disse...

e eu fiquei pensando e pensando em tudo escrito aqui. Forte. Imagens que foram dos meus olhos à minha carne em instantes e eu acho que nunca mais vão sair...


obrigada por compartilhar esses pensamentos, Ana, de verdade.

Anônimo disse...

e eu fiquei pensando e pensando em tudo escrito aqui. Forte. Imagens que se arrastaram pesadamente dos meus olhos à minha carne em instantes etéreos e acho que nunca mais vão sair...


Obrigada por compartilhar esses pensamentos, esses sentimentos, Ana, de verdade.