terça-feira, 7 de outubro de 2008

Diário de Joana


Escuta! há bem perto daqui uma linda mulher
Uma mulher dorme perto daqui.
E agora mesmo, a cabeça reclinada sobre o braço,
Oferece o seu sopro e lindo rosto, cheio de dor feroz,
À branca luz da lua
Seu nome é Galaxáurea.

Paul Claudel, L'endormie


Todos ignoravam a transformação daquela mulher. Não que não gostassem de olhar para ela, de ver seus movimentos graciosos, sua pele clara como o mais diáfano dia contrastando com os cabelos negros como a mais escura e misteriosa noite. Na realidade, apreciavam sua companhia e vinham sempre se refrescar em sua fonte, na ânsia de recarregar baterias gastas pela cegueira coletiva ou ainda despertar velhas esperanças já tão laceradas pela coexistência.
Mas as pessoas não conseguiam sentir quem era Joana. Mesmo assim ela gostava da procura. Apreciava esses encontros com a convicção de quem entende o que é crucial para a sobrevivência.
No entanto, o mesmo instinto de sobrevivência clamava desesperadamente: queria ser vista! Seu invólucro-corpo, num pacto de sinceridade absurdo com seu espírito, trazia estampado em pele e cabelos o que gritava entretecido em suas entranhas: que seus dois lados, que suas metades não entravam em nenhuma armadilha de síntese, não desejavam uma composição, nem muito menos o simulacro da dominação de uma pela outra, da hipócrita retidão falsificando a realidade da vida. Não. Joana desejava sorrir com a mesma intensidade que não abria mão de chorar.
Dia de eleição, recebeu a visita da mãe. O mesmo lugar que já foi familiar hoje parecia pequeno demais para as duas. Desde que sua avó morreu, sua mãe não consegue permanecer mais do que quinze minutos na casa. Olha em volta como quem busca as sombras de alguma felicidade antiga. Como parece nada encontrar, além de memórias que doem, rapidamente sai com a energia de uma fugitiva. Na despedida, Joana percebe a tentativa da mãe de disfarçar o olhar de espanto, como se indagasse: "como ela consegue viver sozinha aqui, depois de tudo o que aconteceu?"
Quase perde a hora de cumprir com seu dever democrático. Talvez por ter se dado conta de que essa seria a primeira vez que iria sozinha votar. Lembrou o olhar de indefinível cumplicidade de sua avó quando votou pela primeira vez, o mesmo olhar cúmplice que ela lançava quando Joana tocava piano, ou fazia qualquer coisa corriqueira, não importava o quê, tudo adquiria um ar especial porque entre aquelas duas mulheres existia um amor genuíno. O dia de hoje foi duro para Joana, provavelmente por ter percebido, num arroubo de pena por si mesma, que cada vez mais a vida lhe tributava a solidão. Será essa a sina de quem encontra um mundo dentro de si? Ter apenas a si mesma para compartilhar a intensidade das cores que vê? O esplendor das melodias que escuta? Joana censurou seus pensamentos. Afinal, tinha encontrado uma ponte para a cumplicidade. Sabia que ele via. Não sabia ainda o quanto ele via.
*imagem "O piano" de Jane Champion

Um comentário:

aluisio martinns disse...

Ser grande, como é o seu caso, começa por saber-se pequena, como também se aplica ao seu caso. Imedida de centelha. A tal que daríamos tudo (e damos) para trazer à tona e dar um tom indelével como a boa arte ou a arte - se não é boa não é arte. Quando digo arte, digo algo que em som-vibração passa pelo teu nome-pessoa. Algo que traduz, reluz, é luz. Sim luz, mesmo quando necessário é o escuro para caminhar mais firme e atento. Este leitor fica aqui, cheio de contentamento. Alma dança mariri para toda tribo, Guarani, Tupi, Asheninka, kashinawa e pretos e pardos e desejosamente parvos que creio inexistirem.
Toda terrra está aqui.