sexta-feira, 31 de outubro de 2008

A cooptação da ironia


Os passos estavam lentos e o olhar contemplativo. A calma de fora entrou em confronto com a inquietação de dentro. As perguntas escapavam de suas grades, transbordavam conexões entre passado e presente. Na saída do museu a ventania de outubro fez uma bagunça em meus cabelos, mas as idéias não se dispersaram com o vento. Permaneciam decididas a ficar, como se indagassem, insistentes, qual o destino que eu daria àquele encontro. Sem conseguir traçar um caminho nítido, que proporcionasse um rosto definido ao que me angustiava, procurei a lucidez de um amigo querido e conversamos bastante sobre o assunto. Expliquei que a visita à exposição sobre Pop Art da coleção do IVAM no MAC tinha aguçado minhas reflexões sobre o Pop hoje e era justamente isso o que me tirava o sossego.

Precisava identificar uma linha coerente com as trocas que estabelecemos a partir da onda Pop. O que fizemos com nossa herança? Foi possível perceber a essência do que recebemos? Conseguimos chegar ao conteúdo do movimento ou ainda estamos hipnotizados pelas cores das embalagens, boiando perdidos pelas superfícies das coisas?

Para organizar os pensamentos é melhor voltar ao começo, olhar para a base. Pop Art é um movimento histórico, que emergiu nos anos 50/60, com uma caracterização marcante amparada na utilização de símbolos da cultura popular e da propaganda. Os artistas do período estavam famintos por experimentações, processando a intensidade das cores da alegria vendida pela sociedade capitalista. O fluxo Pop é, portanto, fruto da revolução industrial, que paulatinamente estampou cores, padrões de beleza, modelos de sucesso e inúmeras promessas de felicidade.
Sim, o Pop Art é filho do capital, mas é um rebento bem rebelde. Como processo artístico, tem o agradável traço da ironia e do jogo com códigos. Estabelece conexões instigantes com o diálogo sobre a dessacralização da arte, utilizando uma linha bem mais irônica e humorada. Evidencia a promessa capitalista: colorida e portadora de uma estética que promove um território propício para a fertilização das ilusões pré-fabricadas. O movimento, principalmente em sua face americana, escancarava com traços e cores fortes, a era da futilidade.

O diálogo faz chegar bem mais profundo o punhal que atravessa o invólucro das coisas, em meus questionamentos diários sobre as vicissitudes do capital: - Então, meu amigo, o que se perdeu pelo caminho? O que foi cooptado pelas forças do mercado? Com sua lucidez impressionante, ele me responde: quase tudo, Ana. Nesse sentido, o que lamento mesmo, foi a cooptação da ironia.

Mantenho o distanciamento necessário para poder enxergar. Torna-se factível que nem mesmo o Pop conseguiu manter-se com a mesma virulência inicial. A sociedade de consumo tem mesmo a maldição do efêmero e vai transformando tudo em mercadoria. Foi assim que não teve nenhum acanhamento em colocar códigos de barra no ideário pop, que passou a ser vendido como estética descolada.

Dói ver o Pop hoje compreendido como elogio. Como uma necessidade de adequação. Seus laços com a ironia estão frouxos. Reflexos da sociedade do espetáculo, evidenciada por Guy Debord. Tudo é raso, superficial e poderoso: os ícones da música, o culto às celebridades, a estética “rebelde” de boutique. Tudo hoje pode ser pop, lamentavelmente esvaziado de sentido: Warhol, Hamilton, Che Guevara, Lula, Jesus Cristo, Angelina Jolie, qualquer big brother, eu, você. Trata-se de um fato: o Pop Art como foi nunca mais será, assim como foi com o surrealismo e com todos os outros movimentos. Apesar da consciência da passagem de tudo o que há, acredito que possamos trabalhar melhor com nossa herança. Dar um destino mais fértil e criativo ao que foi herdado.
Eu e meu amigo encerramos nossa conversa com sonhos para o presente e para o futuro. Afinal, somos românticos incuráveis. Desejamos que os artistas contemporâneos resistam mais à cooptação, cheguem com fôlego e tragam novos significados ao interpretarem os códigos que atualmente circulam, injetando uma perspectiva crítica vigorosa e, quem sabe, revigorando também a ironia, bem ao autêntico estilo Pop Art.


Imagem: Richard Hamilton. “O que exatamente torna os lares de hoje tão diferentes, tão atraentes? 1956. colagem sobre papel.

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