Por um momento procure imaginar a seguinte situação:
você está em seu local de trabalho, conversando com vários colegas durante um
intervalo. A maioria das pessoas que participam desta conversa você conhece
apenas superficialmente. Os assuntos são variados, desde o aniversário dos
filhos até o desejo de viajar nas próximas férias. De repente, vocês mudam o
assunto e o tema é o resultado das eleições. Então um de seus colegas começa a
falar colericamente. Afirma que nordestino
não é gente, que são seres estúpidos e responsáveis pelo atraso do país. Para combater esse atraso deveriam ser
adotados procedimentos de castrações químicas e, por fim, propõe que os médicos
da região causem um holocausto nesses seres inferiores.
Creio que a situação narrada no contexto acima, se tomada
tal qual o ambiente descrito, dificilmente aconteceria. Nas relações de
trabalho existe uma série de instâncias reguladoras, mecanismos de vigilância e
controle de comportamentos. Mas se as pessoas procuram dominar o fluxo de
palavras odiosas em outros ambientes sociais, o que explica o jorro de insultos
despejado contra o outro nos espaços sociais virtuais? O teor virulento e maniqueísta das palavras
proferidas após a divulgação do resultado das eleições acirrou vozes que
procuraram aguçar o confronto entre regiões, reconfigurando o país com
neocolonialismos. No cerne do que foi dito, o que as palavras revelam? E, por
outro lado, o que camuflam?
Na análise deste fenômeno existe um dado constituinte do
ser humano que não pode ser desprezado: a agressividade. Para Sigmund Freud nascemos
conduzidos pelo império de nossas pulsões, que estão constantemente em busca de
satisfação e alívio das tensões. Essa vida instintiva é marcada por uma
dualidade: Eros e Tanatos, respectivamente pulsão de vida e pulsão de morte. Com
o processo civilizatório tivemos que renunciar a alguns desses caminhos de
satisfação imediata instintual. Direcionamos a agressividade para outros
caminhos e procuramos prazeres substitutivos. No entanto, o conflito implacável
entre Eros e Tanatos está sempre presente e produzindo fissuras.
Em pessoas infantilizadas psiquicamente, quando existem
grupos separados por uma diferença, como no caso da escolha do candidato à
presidência da república, há um severo conflito narcísico. A questão narcísica
foi factível nas redes sociais durante a campanha. Foi um período em que
observei discussões que culminaram em exclusões da rede e términos de amizades.
Houve uma cisão na identificação com o outro. Quando o resultado foi divulgado
o acúmulo de tensão fez romper a barragem responsável por conter o fluxo da
agressividade. O sentimento de pertença ao grupo, dependendo do grau dos
mecanismos de identificação, pode ensejar uma dissolução de fronteira entre realidade e fantasia. A
agressividade é direcionada ao diferente, desumanizando-o. Transformado
em inimigo, resta combatê-lo e quem sabe, destruí-lo.
Portanto,
nas atuais manifestações de ódio contra os nordestinos nas redes
sociais, existe um nítido comportamento narcísico de grupo, exacerbando uma
cisão da realidade que é própria da psicose. Perdidas na amplitude do espaço
virtual essas pessoas deixam de sentir o peso das instâncias reguladoras e
vivem sua onipotência infantil projetando no outro a responsabilidade por suas próprias
existências mal resolvidas.
Ana Valeska Maia Magalhães
(artigo publicado no jornal O Povo edição de 08/11/2014)