“Um grito infinito atravessando a natureza”. Este é um dos trechos do
poema que o artista norueguês Edvard Munch escreveu após uma caminhada
ao pôr do sol e que dizem ter inspirado a obra mais famosa do artista, O
Grito, de 1895, recentemente arrebatada em um leilão da Sotheby’s de
Nova York, por US$ 119.922.500.
O leilão foi
concorridíssimo. A expectativa agitava o mundo dos investidores do
mercado de arte. Enquanto alguns temiam o furto do quadro, outros
dedicavam seu tempo a pensar quem seria o possível comprador. Um grande
executivo? Um ricaço da Ásia? Talvez algum xeique do Oriente? Com
certeza o comprador é detentor de grande fortuna. Bilhões e bilhões em
caixa de quem pode ter O Grito só para si.
A venda
espetacularizada da pintura que exibe angústia e desespero puxou alguns
fios da memória, principalmente de fatos relacionados à propriedade
privada e o tomar a possibilidade do contemplar só para si. Narro,
brevemente, um fato do passado.
Cerca de duas décadas atrás
um grupo de adolescentes costumava esperar a chegada do por do sol no
alto de um morro na praia da Lagoinha, protegidos pela sombra de um
juazeiro. Era encontro certo nas férias. Muitas conversas, brincadeiras,
histórias de vida compartilhadas no contato com a exuberância da
paisagem. Até que em uma tarde, ao começarem a subida do morro, o
impacto. O juazeiro estava cercado. Voltaram algumas vezes na esperança
de que a paisagem não fosse mais proibida. Sempre em vão. A cerca
continuava lá, o sol em seu lento encontro com o mar também e ninguém
mais para ver, sentir, amar aquilo.
Voltando ao episódio
da venda do Grito, li que um dos maiores colecionadores de arte afirmou
que queria a obra na parede de sua casa e “ficar olhando para ela o
resto da vida, e ser feliz”. Lembrei que estamos próximos da Rio+20 no
compasso da espera de como se desdobrará a questão do veto da presidente
Dilma com relação ao Código Florestal. Notei como meu pensamento foi
viajante, e senti, forte como é um grito mudo, que existe algo
atravessando tudo isso. Forte como a lembrança do por do sol que nunca
mais terei.
(artigo publicado no jornal O Povo, edição de 07-05-2012)
3 comentários:
Ana, às vezes, creio que o avanço desse conceito de propriedade privada tem tornado o homem cada vez mais isolado no mundo, mais solitário. E não raro, isso tem me assustado um pouco, principalmente, porque eventualmente flagro-me lutando contra este impulso de isolamento. Parece estarmos aos poucos aderindo a esta privatização do que deve, por natureza, pertencer ao domínio público. A obra de arte e a beleza de um por do sol não podem ser arrematados por dinheiro. Há, sim, qualquer coisa muito estranha acontecendo...
Veio-me agora à memória aquela clássica cena de Diógenes de Sínope e Alexandre, o Grande, o todo poderoso homem, que ao perguntar ao primeiro o que por ele podia fazer, Diógenes responde olhando para o sol, para que não lhe tirasse o que não lhe podia dar.
A imagem de um juazeiro cercado, dos olhares dos jovens à distância e desse crepúsculo... nunca mais vou poder esquecer, e mesmo sendo tão melancólico e inquietante (que vontade de ir lá violar aquela cerca tão destoante desse cenário, não?) acho que nem quero esquecer.
É muito bom te ler, mas já disse várias vezes, então vou para de dizer, juro.
^^'
Abraços
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