terça-feira, 8 de novembro de 2011

Entre costuras



I
Ontem tivemos aula sobre religião. Re-ligar. Passeios ancestrais, xamanismo, animismo, mergulhos politeístas desaguando no monoteísmo de castas sacerdotais. Preconceitos cultivados com nome de Sol e Lua, masculino e feminino, bom e mau, certo e errado, sagrado e profano. Tão fácil nomear, difícil é se aceitar o humano como se é, mescla de tudo. Criada a trama moral, padrões tributam o sentir e a humanidade cultua tribunais, inventando seus culpados julgados no calor das linguagens de inquisidor.

II
Quando vejo a natureza e procuro conceitos já matei a natureza em mim. Ah, isso é muito Fernando Pessoa, ele me socorre e me desarmo de tantas certezas. Construir é desconstruir. Olho para as estrelas e desfaço seus nomes, desalinho, destramo, fica só a força, a luz, desfaço, desfaço, despida, até ser sou só eu, em essência e origem, também estrela.

III
Habito o tempo entre costuras. Em algumas me compreendo senhora do destino, tramo e teço o pano, fio por fio, despejo rendilhados de menina carente: “veja o que eu fiz”. Em outras aceito os fatos dados e ainda teimo em ser na vida tecelã, uno as partes, com perícia de linha e agulha, perfurando e preenchendo. Em outras visto a rebeldia e faço rasgos no tecido que me impõem, na fazenda que me pesa, no bordado que não é meu. Já vivi como trapo e aprendi a me construir nos remendos de meus cacos.

IV
Noite quente de novembro, mulher é bicho ancestral. Química da vida, enluarada que nem loba.  Leio em voz alta, diante de um olhar muito atento, nua e ainda exalando aromas do afeto, com uma flor de jasmim no cabelo, um poema de Baudelarie.

Um comentário:

Sérgio Costa disse...

O que comentar senão "perfeito"?
É o velho desejo de nos despirmos por completo, até mesmo os trapos que mal cobrem a verdadeira essência.

Tantas coisas, tantos padrões, eu's, adjetivos, vestes morais e amorais, leis, perfis (reais e virtuais), escudos, armaduras e ardis... Ainda bem que nos resta a solidão para, ao menos por um instante (ou numa noite quente de novembro), sermos. Simplesmente, sermos.