quinta-feira, 21 de abril de 2011

Expor as ausências


"Perdemos nesses últimos anos a capacidade de imaginar um mundo sem pena, sem castigo, sem prisão. Pandemônio: é isso que estamos vivendo (...)

(...) nós estamos com um apego subjetivo ao castigo"

(Vera Malagutti)

Armas todos portam. Invisíveis, perfurantes, de fogo, além das prisões cercadas de arame farpado. Começo com esse assunto porque ontem foi publicada uma matéria cortante sobre a realização de um Salão de Arte no espaço claustrofóbico do presídio IPPOO II. Confesso que ao ler a reportagem fiquei decepcionada com a abordagem da repórter, principalmente por ter, no dia da visita, conversado por um bom tempo com ela, sobre as vicissitudes da sociedade, argumentando como é complexa a trama do encarceramento no Brasil e o entrelaçamento da arte com tudo isso. Para mim existiam os fios da confiança porque ela pareceu tão receptiva e manifestando concordar com os argumentos que estranhei o teor da matéria publicada alguns dias depois. Recomposta do fato, tenho a intenção de refletir sobre essa trama um pouco mais.

O óbvio ululante: o que se esperar de um Salão de Arte que acontece em um presídio? Obstáculos gigantescos à circulação de pessoas. Para quem não entendeu é esse o objetivo. Exibir, pelo que se esconde, uma realidade que a maioria das pessoas não quer ver. Continuo a afirmar que um dos objetivos do Salão de Abril é democratizar o acesso à arte, e que a atual proposta vem, mais do que em todas as outras, dialogar com as ausências desse acesso. Observe a cruel realidade do sistema carcerário: Quase a metade da população carcerária não tem o ensino fundamental completo configurando o resultado da trajetória brasileira: a prisão tem exercido a função de controle de classe social. Resumindo, para ficar bem óbvio: quase sempre, quem vai para a prisão no Brasil é pobre. A realidade? As pessoas saem do sistema em piores condições do que entraram. A maioria das prisões brasileiras é um depósito de seres humanos. A realidade? Vivemos uma criminalização da pobreza. A pesquisadora Vera Regina Pereira de Andrade, pós- Doutora em Direito Penal e Criminologia afirma “se tem que haver uma ressocialização é da própria sociedade que produz os seus criminosos”.

A casa do artista Diego dos Santos, que está quase afundando e passou despercebida por alguns é a nossa morada como sociedade. Olho para ela e pergunto se alguém vem realmente contribuir de uma forma madura e consciente como agente de mudança, para tirar a casa da lama. Para os artistas, continuar expondo em cubos brancos, festejando o ambiente que quase sempre é composto para o deleite dos próprios artistas pode significar um compromisso com um sistema mercadológico alienante que ganha com a omissão de muitos. Acredito que a arte pode se livrar dessa prisão. Quem caiu na armadilha? Na Matrix é fácil engolir a ilusão. Para quem tem coragem de espiar as tramas do real, as ausências traduzem a realidade dos fatos.

23 comentários:

pEdrooo disse...

Vejo lhe transbordar intelectualidade por isso perco o rumo da leitura e não acabo entendo, ao certo não aceitando, não credito no pandemônio e só apenas em super lotação, não das prisões e sim das ruas...
Não estamos com um apego a castigos apenas estamos mais vulneráveis a cometer delito o fogo e prisões altas é para as pessoas ficar la sem ficar fugindo, pena que certas armas caem em mãos erradas. Não cito casos e nem exemplos pois ao menos um segundo ele teve razão !
parabéns pelo post gostaria de ter esse estilo de ar (arte ) perto de minha vida pena² que minha vida esqueceu de mim e fugiu pra cidades grandes.... ^^

Anônimo disse...

Legal muito bom. prof. Ana Valeska, concordo com a pesquisadora Vera Regina. Dos meus vinte e um ano da minha vida dediquei a policial civil, exercendo o cargo de escrivão de policia e conheço de perto o assunto aqui abordado, porém, acho que se os Governos, tanto o Federal como o Estadual não fizer sua parte, nada vai mudar,talvez, pelo fato de sistema carcerário nesse país não dar votos.

Anônimo disse...

Estou absolutamente de acordo com o texto. Mostra com clareza que a sociedade não exerga os excluídos, os ignora. O texto é sensível e poético. Me faz pensar que ainda ha possibilidade de transformação nas pessoas.

Anônimo disse...

Ana, o que esperar dessa sociedade apontada pela Pesq. Vera Regina? Uma sociedade que cria suas próprias prisões dento de suas casas gradeadas, nos seus condomínios murados, nos seus carros blindados e nas suas compras feitas no confinamento dos shopings centers, e acha tudo isto normal?!
Belo texto. De quem está debruçando de fato na questão.
Neste sentido o Salão de Abril de 2011 começa a se valer, gerando o debate, a dúvida e, principalmente, o incômodo.
Ricardo Resende

Ana Valeska Maia disse...

Olá Ricardo,

Grata pelo comentário. Bom saber da tua visita aqui.
Bj grande.

Diego de Santos disse...

Oi, Ana. Tudo bem?
Também me senti como vc ao ler a matéria publicada no Diário e vim aqui para manifestar meu apoio ao que vc escreveu e à proposta do Salão. Gostaria de dizer que conheço muito bem a experiência de ser minoria em vários aspectos e minha breve participação naquele espaço foi o ápice dos meus 6 anos de carreira. Me senti bem mais pleno como artista e como cidadão. Fiquei bastante contente em saber da forma como vc e as pessoas de lá se relacionaram com o meu trabalho. Certamente, os que lá estão se sentirão muito mais proximos daquela casa. O motivo está bem claro nas suas palavras. Se todos discutimos nossas trajetórias em uma sociedade difícil, bem como a possibilidade de transformação daqueles que mal tiveram como estar nela, o que dizer da proposta desse salão, meu Deus?
Muito grato a todos.

DIEGO DE SANTOS

Ana Valeska Maia disse...

Legal Diego. Bom saber disso. Parabéns pelos teus processos, como artista, como cidadão.

Unknown disse...

Oi Ana
Quero me solidarizar com vc. A matéria do Diário só repete a incompetência do Jornalismo Cultural no Brasil. Ainda bem que existem pessoas como vc para melhorar a qualidade do debate.
Gd abraço,
Silas de Paula

Ana Valeska Maia disse...

Silas, o debate sobre a ligação da arte com a vida tem pairado na superfície, na beira, num quase, num talvez. Quando será profundo realmente? Existe muito a ser desdobrado e estou esperançosa que as questões que realmente importam sejam evidenciadas.
Grande abraço, bem forte.

Andrés Hernández disse...

De fora para dentro, de dentro para fora ..... verdades

Ana
Belo texto, como bela a convivência com você e o aprendizado pelo seu domínio do tema.
Cada palavra sua, dita ou escrita, foi corroborada na visita ao IPPOO II. Na vivência com os detentos ficou clara a necessidade de atitudes e ações que deixem de excluir e que incluam a todos. Repito e amplio, a todos os seres humanos.

As vivências dos detentos com os artistas e vice versa, e de nós todos que tivemos o privilégio de participar no plantio desta semente do Salão de Abril , evidenciam a necessidade de organizar ações que gerem, a partir da arte, discussões sadias para consolidar o papel social da mesma.

Ações, como esta, que façam da arte um veiculo enriquecedor que, tendo como ponto de partida o diálogo com, e entre todos os membros da sociedade, ofereça possibilidades de conhecimento, educação, cultura. Sem exclusões!

Grande abraço
Andrés Hernández

Ana Valeska Maia disse...

Andrés,
A situação do cárcere é uma entre tantas que se sustentam pelo convênio tácito que as pessoas celebram com o sistemão.
Como sociedade, vivemos em uma democracia falaciosa, na caverna de Platão, percebendo as imagens com o estatuto do real.
Bj grande Andrés.

Anônimo disse...

O problema do texto começa no problema da curadoria em ter como "objetivo" de um salão a democratização da arte e em tom de "solução" ou "problematização" pela negativa - ao levá-la ao "lugar" supostamente inacessível - denuncia a sua limitação aos cubos brancos. Ops, já vimos esse discurso em O`Doherty, Crimp, e tantos outros, ser tensionado com mais propriedade e complexidade (para utilizar termo da curadora)? Ademais, a pergunta "qual é o lugar da arte" é essencialista e, não se enganem, moralista. A matéria do Jornal é igualmente incompetente, como aponta o prof. Silas. Porém, nos evidencia os equívocos curatoriais em elegerem lugares "diferentes" como "reflexão prescritiva" para a arte. Quanto bobagem, quanta bobagem... Há outro problema, ainda,se pautam no Foucault e esquecem que o próprio passou "do poder" às relações de si consigo... atenção pessoal, as prissões são outras, as questões são, definitivamente, bem mais delicadas e complexas (para novamente citar a autora do texto) do que as aqui expostas.

Ana Valeska Maia disse...

Muito interessante tua colocação.
Pena que a assinatura está ausente.

clarissa campello disse...

"As prisões são outras"... as prisões são essas também. Através da experiência no presídio foi possível vivenciar escancaradamente o absurdo da questão judicial no Brasil. É moralismo se perguntar pelo lugar da arte? E o que nao é moralismo, meu caro? Por acaso a arte se faz em outro planeta? Em outro tempo histórico que não exatamente esse? Acreditar nisso sim é que seria pensar de forma essencialista...
Agradeço à organização do salão por ter me proporcionado essa possibilidade incrível de troca de experiências e espero ter retribuído à altura.
Abraços, Clarissa Campello

Maíra Ortins disse...

é provável que a assinatura está ausente porque este que a comenta também está delicadamente preso em seu cárcere.Estamos em uma democracia, cada um pode expressar o que pensa e, portanto, livre para expor a identidade.

danimelo disse...

Bom dia,
Li a matéria do diário e também me senti extremamente incomodada, pois adorei o salão ter ocupado o IPPo uma semana depois em que o delegado diz que não tem como segurar presos como gadernal aqui no Ceará.
O problema é que as pessoas não estão preparadas para saírem de suas prisões mentais.
Adorei a frase "Para quem tem coragem de espiar as tramas do real, as ausências traduzem a realidade dos fatos."
Parabéns a iniciativa é massa!

Ana Valeska Maia disse...

Clarissa, Dani e Maíra,
Fica difícil dialogar com quem não assume a identidade.
Percepções de mundo baseadas em autor B ou C, criticando autores A e D isso é fácil encontrar. Bom é encontrar quem realmente está agindo, procurando costurar alguma parte do tecido social esgarçado.

Anônimo disse...

Ah, então o que está em voga é o "Autor" dos escritos e não o escrito em si, é isso? Pois este primeiro está morto. Prezada Maíra, teu comentário é infeliz, falar de democracia e exigir uma identidade? O que é isso, minha cara? O que tu dizes é: dê a cara à tapa? mostre seu rosto ?????
Oh, que lindo, minha cara Clarissa, que a arte te proporcionou essa troca (um velho marxista te indagaria: troca de que tipo de bens mesmo?). Fico feliz por ti, "coitadinhos das vítimas" do IPPO... Torço para que você continue procurando O lugar da arte... enquanto isso, eu sigo lutando por uma arte sem lugar e sem precisar rebaixá-la ao tom de denúncia e sem precisar, sequer, de um nome, lugar e, sobretudo, identidade.

Meire Guerra disse...

Pois bem,queria só falar um pouquinho: Acredito muito na interlocção artistica com as pessoas daquele espaço."Um dia em que arte teve um poder de penetração prático no respeito em saber entrar na casa das pessoas que lá habitam".O mais bonito foi ver a reciprocidade deles,os pra quem senssívelmente direcionamos o foco dessa edição do Salão,pessoas esquecidas,mas que tinham e tem tanto a dizer,pessoas preocupadas em uma requalificação social....A comunicação visual foi aos poucos se estabelecendo...pequenos e complexos espaços no movimento de passos que se tornaram grandiosos,basta apenas começar.Isso já foi feito,pude contemplar que arte pode e deve ir e seguir sempre não importa aonde...mesmo gerando alguns encômodos,pois a comunição visual jamas pode parar,gerando questionamentos e tudo o que arte é capaz!Quando falamos pra nós mesmos os sons batem nas paredes e voltam sem nada dizer...mas,quando falamos pra o outro,os sons reverberam em tudo.
Meire Guerra/Artista visual e coodenadora da ação educativa
do 62º Salão de Abril 2011.

MeireGuerra disse...

Penso que devemos saber entrar na casa das pessoas,pedir licença.Foi isso que a arte fez nesse dia e antes tb,na preparação,nas montagens das obras selecionadas para aqueles espaços do IIPPOO 2.A interlocção artística visual foi estabelecida.Buscamos falar com pessoas que tanto nos tinham a dizer.O primeiro passo foi dado,não devemos parar.Questonamentos são bem vindos e bom senso tb...a arte deve ser democrática e mostrar o que ela tem de melhor:Seu poder de penetração e a busca de novos olhares sempre,não importa onde.
Grande beijo Ana,
Meire Guerra

clarissa campello disse...

Bom, então só posso te desejar felicidade na sua busca por uma arte sem lugar, sem nome e sem tom de denúncia. Seria contradição querer nomeá-la arte, não? A sua coisa-em-si, expressividade livre, não-objeto ou seja lá como for que você o chama teria algum outro tom? Algo que sequer precisa de reconhecimento deve ser uma verdadeira pérola da pureza, sem dúvida. Parabéns!

Maíra Ortins disse...

Clarissa,
Concordo em gênero, número e grau. !

Diego de Santos disse...

Meu Deus! Completamente impressionado com o comentário do Anônimo! Sobretudo com sua falta de compreensão do que está sendo dito aqui, pelo menos. A Maíra falou da liberdade de expor ou nao a identidade, em momento nenhum houve alguma cobrança por parte dela. E se o Anônimo prefere realizar sua arte sem rebaixá-la ao tom de denúncia ou seja lá o que for, sua "coisa em si", como disse a Clarissa, existe? Valeria a pena, só pra poder dizer alguma coisa, ter sabido do que a Clarissa fez. Arte sem lugar, nome, identidade... é no mínimo, muito mais que anônima. Desejo ao anônimo muita sorte na sua luta completamente inédita, pois ninguém nunca fez arte assim.

DIEGO DE SANTOS