quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

A estética do jardim


Casa da Flor, Ilha das Flores, Jardim Gramacho. Nomes que evocam imagens poéticas de locais contemplados pela exuberante beleza da natureza. Uma narrativa aparentemente melíflua de flores e jardins multicoloridos que abriga a contraditória realidade que une gente e lixo. Espelho oculto da dinâmica de poder de uma sociedade hedonista que estimula a fartura do consumo como ápice da satisfação dos desejos, abusando do brilho sedutor do espetáculo e que joga para debaixo do tapete suas toneladas de restos.

Como em outros “lixões”, no Jardim Gramacho, maior aterro sanitário da América Latina, tudo se encontra: materiais orgânicos frescos e em decomposição, latas vazias de cerveja, refrigerante, suco, caixas de papelão, potes de plástico multiplicados em cores, formas e tamanhos variados, papéis diversos, material de propaganda prometendo a tão sonhada felicidade, sacolas, cadernetas preenchidas com letra caprichada discriminando os devedores do mercadinho, documentos perdidos ou furtados, bonecas quebradas, santinhos, relógios que pararam no tempo, xícaras com e sem asas, livros, fotografias desprezadas de ex-amores, roupas, grinalda, vestidos de noiva, cacos de louça, cacos de vidro, uma sandália separada para sempre de seu par, fragmentos da demolição do que no passado foi uma casa, quem sabe, um lar. No lixão acontecem encontros de objetos, fragmentos, história, animais, gente e muita, muita sujeira.

Jogada no lixão pulsa esta memória abandonada, anônima, que se quer esquecida, mas que teima em entrelaçar vidas: a da coisa constantemente mexida, remexida, vista, examinada, cheirada, selecionada e a do catador da coisa, que têm, nela, seu sustento. “Lixo? Lixo serve pra tudo. A gente encontra a mobília da casa, cadeira pra pôr uns pregos e ajeitar, sentar. Lixo pra poder ter sofá, costurado, cama, colchão. Até televisão. É a vida da gente o lixão.” (fragmento do conto “Muribeca”, de Marcelino Freire, in "Angu de Sangue").

A persistente relação mantida entre gente e lixo constitui o resultado de uma sociedade de consumidores influenciados por uma constante teia de estímulos e propaganda. Sociedade que cultua a imagem e estampa a dinâmica do que é in e do que é out, do que está dentro e do que está fora, do que já foi e não é mais, criando com celeridade e eficiência as tendências de uso, descarte e substituição. Nosso mundo globalizado representa o eficaz prognóstico do analista de mercado Victor Leblow: celebremos o mundo das coisas, que devem ser rapidamente consumidas e substituídas por outras sem cessar. Se vivemos de trocas, descartes e substituições, também vivemos um acúmulo de lixo físico e simbólico, que desfila na multiplicidade de signos, na obsessão com os modelos pré-formatados de beleza, sucesso e felicidade. Na sociedade de consumo atual, vende-se de tudo, inclusive fetiches democráticos.

No território das Artes Visuais, há tempos, a incorporação de objetos na construção dos trabalhos é prática frequente. A “assemblage” adota o princípio de que qualquer material pode ser agregado à obra, criando sentidos para o que antes estava destinado a outro uso. Esse emprego de novos sentidos pode acontecer inclusive com o lixo. Na década de sessenta do século passado, o artista Arman, expõe a obra “Cheio”, em Paris, entupindo o espaço com objetos catados no lixo.

Existe, então, uma estética do lixo? Além da questão propriamente estética, em um universo que descarta tanto as coisas quanto as pessoas, a arte pode ser também política e permitir um fluxo de reflexão e diálogo sobre situações que ferem a dignidade da pessoa humana, regra matriz da constituição dos direitos humanos fundamentais. Esse toque sensível pode estar nas flores construídas durante décadas, com pedaços e cacos colhidos no lixo, por Gabriel Joaquim dos Santos, autor da Casa da Flor; pode florescer no movimento de crianças e adolescentes no balé “Jangurussu” da Edisca, ou na força das pinturas de Descartes Gadelha. Pode estar no olhar firme e delirante de “Estamira”, ou na curiosidade das pessoas que participaram do documentário “Boca do Lixo” e indagavam vez ou outra o porquê da filmagem. Pode ser nome poético de lugar jardineiro que revela a cruel luta pela sobrevivência de pessoas buscando alimento freneticamente disputado com os porcos nos montes de lixo da “Ilha das Flores”.

Depois das flores, um jardim, apresentado para o público no documentário “Lixo extraordinário” e que demonstra o processo de trabalho do artista visual Vik Muniz envolvendo os catadores do Jardim Gramacho. O filme emociona o espectador porque vigorosamente exibe o papel transformador da arte, o espanto das pessoas que saem de uma condição fechada e passam a incorporar um diálogo mais aberto com o mundo e o outro. A linguagem que modifica a vida, ilumina o espírito humano e diz mais ou menos assim, na voz do artista: “o momento em que uma coisa se transforma em outra, é o momento mais bonito, é o momento mágico”.

Um momento mágico que pode ser mais uma cena do espetáculo, um produto, uma coisa, ou pode, com toda a inteireza e beleza que a palavra comporta, ser uma estética da vida, uma consciência ecológica da solidariedade, um imenso e real jardim.

(Texto originalmente publicado no caderno Vida e Arte do jornal O Povo, edição de 20.02.2011)

2 comentários:

celeal disse...

Que belo texto! Quanta sensibilidade. Um olhar para além da estética. Um jardim de palavras!
Bj

Ana Valeska Maia disse...

Carlos,
Tuas palavras chegam como jardim!