quarta-feira, 24 de março de 2010

Os devaneios que a chuva me deu


Ar em dia de chuva tem densidade própria e as águas de março enfim chegaram. Vigorosas como um ventre que explode em um rebento ansioso por movimento. Tremi com o poder do trovão que acordou o dia, quis ficar encolhida em meu casulo, mas uma memória inquieta não permitiu a comodidade, uma memória que não sei se posso chamar de exclusivamente minha. Sempre sinto as experiências com doses de ancestralidade e tudo é tão familiar como se os encontros fossem, na realidade, reencontros. Observando os movimentos do mundo vejo a água benfazeja, infiltrando-se pela terra e gerando incessantemente a vida. Enquanto as águas seguem seu caminho, percorro os degraus da escada em caracol que existe em meu jardim. Um olhar perscrutador caminha pela casca da casa como se fosse possível lê-la, tal qual uma casa de palavras. Arranco as camadas de tinta, procurando entender os mistérios da morada com um olhar de Lince, penetrando nos segredos secretos no coração das pessoas. E imagino qual o segredo de meu coração que ainda não encontrei? Volto no tempo e sinto os sorrisos de minha mãe e minha avó e as brincadeiras nos dias de chuva pelas ruas da cidade com meu irmão, no sorriso mais escancarado do mundo. Naquele tempo tudo era possível, inclusive ser feliz sem culpas. Talvez tenha encontrado a chave do que procurava abrir hoje. Estava no alto da escada que vai dar no céu, ainda chovia, e meus olhos choveram também quando o sol surgiu imenso e os pássaros voltaram a cantar seus hinos. Estava novamente feliz como apenas as crianças conseguem ser.


imagem: fotografia de Paulo Amoreira

6 comentários:

Eduardo Porto disse...

E hoje quando voce nos falou na aula, mesmo com todos os alunos rindo do acontecido, deu pra perceber/entender o quanto podemos ser felizes sem parecer abobalhados, do quanto podemos ser crianças e sentir o calor no coração da nostalgia que temos quando sentimos o cheiro da chuva molhar a terra. Do quanto minha avó gritava quando eu saía correndo nas ruas do Monte Castelo e ficava subindo nos pés de jambo do vizinho naquele verdadeiro dilúvio que se deu 1997...

Senti um calorzinho no coração agora...

Bons tempos.

Daniel Simões disse...

"Ao sonho que um dia sonhamos,
a esse retornamos" - escreveu Fernando Pessoa.
Eu estou regressando...

Anônimo disse...

Gostinho bom de de banho de bica, de saudade, de inverno, de aconchego, quando li seu belo e chuvoso texto, (Jo)Ana, que até meu coração bateu mais alegre hoje de manhã cedinho.
Bjim,
Jô.

Steven Douglas disse...

Hoje acordei estranho.. me senti o dia todo com a energia baixa.. acho que por causa do tempo nublado. O céu fechado me deixou fechado também.. não sei.. mas agora lendo seu texto sobre os devaneios trazidos pela chuva.. to me sentindo bem melhor. Me fez lembrar a infância.. ah.. a felicidade era tão fácil de ser atingida.. e pura, vinha por vir, com passar do tempo ela começa a ter certos caprichos..
Se eu tivesse lido esse texto no começo do dia, certamente ele teria sido bem melhor.. e também, porque não dizer, mais feliz.. :)

Ana Valeska Maia disse...

Vocês são lindos!

Florêncio E. disse...

Esse devaneio chuvoso também me fez rememorar uns dias em que a vida não era vivida com tanta correria, mas com as estripulias de criança. Fiquei feliz de vir te visitar e encontrar um texto tão sensível. Já gostei do Steven!

Beijo Ana flor linda :)