segunda-feira, 1 de março de 2010

Kiriri

Março inaugura seu reinado em noite insone, o calor está no ar e recebo com honrarias a visita do vento que me trespassa. Recomeçar misterioso esse da vida, todos os dias é um segredo que se revela e uma certeza que se transforma, sensação estranha a que chega pelo canal do silêncio da madrugada, apenas o vento soprando nas árvores, acariciando minha face, balançando os sinos do jardim, num silêncio que não é silêncio, vazio cheio de ruídos. Na floresta os índios chamam silêncio com barulho de “Kiriri”. Os bichos da noite manifestam-se, resistentes ao processo civilizatório, grilos a festejar e uma coruja “rasga-mortalha” atravessa o céu de poucas estrelas. Dizem que quando isso acontece é para repetir três vezes “viva aos noivos”, senão alguém da casa morre. Lembro imediatamente de minha avó, que morreu de câncer aos poucos e uma coruja desse tipo também deu o aviso próximo de seus derradeiros dias. Na época eu não sabia da crendice popular. Lembrei de seus olhares fartos de carinho e do piano secular de teclas amarelas e pretas e que ainda mora comigo. Vive imperioso na sala da minha casa e acomoda porta retratos e balangandãs. Dele só flui a melodia da memória como é o caso do agora. Creio que o piano ficou mudo, morreu também quando minha avó se foi. Éramos uma tríade e só eu fiquei. Suas notas vivem presas dentro de mim e são melodias antigas, como apenas as recordações do amor ou da dor são capazes de guardar com certeza e nitidez. Talvez algum dia eu consiga fazê-lo renascer para seu ofício mas, para garantir, dou três vivas aos noivos e saúdo o sol que já anuncia suas primeiras pinceladas do dia e com ele Bach, Mozart e Bethoven fazendo um enorme kiriri em meus pensamentos.

3 comentários:

Eduardo Porto disse...

Ah, Ana, ler teus textos me dá vontade uma vontade tão grande de desabafar e conversar sobre tanta coisa, hehe. Meu avô também morreu de câncer, e dizia que toda superstição que envolvesse morte não existia, pois se existisse, ninguém morria.

Um beijão. Do seu eterno aluno.

Ana Valeska Maia disse...

Vixe,
Tem lógica o que avô falou....

Steven Douglas disse...

Olá professora.. estou conhecendo seu blog hoje, e já to admirado com tamanha habilidade, criatividade e sobre tudo, sobre tudo.. sensibilidade em escrever. A arte e o pensamento viajante soa em cada canto dos seus textos. E por falar em arte, se me permite dizer, volte a tocar! :] liberte as notas que estão presas em você, reviva as melodias do passado.. e com elas chame as boas lembranças!..