sexta-feira, 26 de março de 2010

Cascas

Encontrei um LP escondido entre as quinquilharias de casa. Era da minha avó. Ela costumava ouvir música todas as manhãs. E com o encontro do LP o mundo do “sentir falta” gritou. Sinto falta da época em que minha mãe dirigia o carro. Não me incomodava em ficar no banco de trás. Muito pelo contrário. Adorava observar os recortes da cidade pela janela do veículo. Noite ou dia, deitada no banco, via os recortes de céu, árvores, prédios, postes, pessoas, luzes e sombras. Criava cidades imaginárias e essa era uma das melhores brincadeiras de infância.

Apreciava ver as repetições, todas as tardes, já pertinho do cair da noite, minha avó colocava a cadeira de balanço na calçada para ver a vida passar. Algumas pessoas chegavam, pegavam uma cadeira e estava montada a roda de contação de histórias. Bons tempos.

E agora?

As lembranças me transportam para o hoje e penso como escrevemos a nossa autobiografia? Como compreendemos a história que escrevemos juntos? Qual o mistério da força entre uma pergunta e uma resposta? O que nos une? O que nos separa? Pensei em você e nas cascas de proteção que criamos para agüentarmos o impacto da vida. Como eu sei de ti? Os olhos sempre revelam os segredos da alma. Sabe como te vejo? Como nas cidades invisíveis do Calvino:

“O inferno dos vivos não é algo que será: se existe é aquele que já está aqui, o inferno do qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo e abrir espaço”.

Sabe qual a música do LP?

Cheek to Cheek.

Segue o video com o Fred Astaire e a Ginger Rogers e com ele um transbordar de memórias. Sim, estou no céu.



5 comentários:

Katsuo Kento disse...

Nada acontece por acaso. As vezes é assim, as trilhas de um "bolachão" abrem a porta da memória e te fazem viajar por aquilo que já viveras. Eu vivo abrindo essas minhas portas, e muitas vezes sem necessitar de um objeto-chave para abri-las. Elas me servem para aguentar viver no "inferno" do hoje. Ajudam a relembrar minhas origens e quem eu sou e a não me perder no caminho em chamas do dia a dia. Não somente as memórias me ajudam, seus textos, seus sorrisos, seus abraços, seu ser, tem facilitado muito meu caminhar. Sou muito grato a ti por isso. <3²

Eduardo Porto disse...

Até hoje eu possuo um tabuleiro enorme de gamão e xadrez do meu avô. Tudo nele, até o cheiro, me lembra o meu velho que já partiu faz algum tempo. Outro belíssimo texto seu, claro. Quem sabe um dia não dançamos um 'cheek-to-cheek', hehe. Beijão Ana.

Franzé Oliveira disse...

Tenho alguns LPs em casa de minha mãe. Não temos mais o tocador.
Não sofrer, eis o que eu queria aprender.

Beijos minha linda.

Ana Valeska Maia disse...

Katsuo: te amo!

Eduardo: A saudade fala!!

Franzé,
Não dá pra viver sem sofrer.
Só se for no mundo das ilusões...
Faz parte do aprendizado da vida.

Ana Cristina Mendes disse...

memórias da Aninha, lembranças da menininha... sim, uma história que gostaria de ouvir mais.
grande beijo!